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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Ele eminhocado

1964 + 50 
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

 (Episódio 12)


por Fernanda Pompeu  ilustração Fernando Carvall

Março de 2010
A matéria soava fácil por conta dos fatos inequívocos, registrados por celulares e câmeras de TV. O governador paulista, José Serra, não impediu que a tropa de choque baixasse a borracha numa manifestação de professores. Educadores apanhando, em frente à sede do governo, era notícia quente e grave. Mas Ele, o redator, titubeava. Não conseguia escrever direito. Culpar um governador? Ele suava. No dia seguinte, sua matéria saiu em espaço nobre da publicação. Mas veio com frases mornas num texto molengamente burocrático.

Dezembro de 1976
O acaso o colocou na Rua Pio XI, no paulistano bairro da Lapa. Recém-admitido em um grande jornal, Ele nunca passava por essa rua para chegar no emprego. Mas nesse dia, optou por variar a paisagem. Estava curtindo a quietude das 7 horas da manhã, quando seu cérebro deu uma parada ao ouvir o berro de fuzis.

Então Ele vê a casa de número 767 sendo atacada. Porta, janelas, basculantes e até pedaços do reboco do teto tremem sob o impacto da fuzilaria. Há grande quantidade de militares e policiais. Seu cérebro volta a trabalhar, Ele se protege atrás de um carro e espera que o matraquear cesse. A coisa toda dura mais de vinte minutos.

Depois vem o silêncio. Parecido com o pesado silêncio que desce nos minutos seguintes às cerimônias dos enterros e cremações. Aquela espécie de nada a dizer, nada a acrescentar. Agora, em frente à casa atacada se forma uma confusão de policiais à paisana, militares a rigor, vizinhos e curiosos. O tal instinto de repórter aparece nele. Furtivo e corajoso ao mesmo tempo, Ele consegue entrar na casa. Vê dois corpos mutilados pelos balaços. Também vê uma mulher ferida.

Hora depois, já na redação do jornal, Ele fica sabendo que os mortos eram os dirigentes do PCdoB Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. A mulher feriada era a militante Maria Trindade, encarregada das tarefas domésticas da casa. Essa informação chegou em uma nota oficial emitida pelo II Exército, assinada pelo general Dilermando Gomes Monteiro. O texto afirmava que os policiais, ao darem voz de prisão, foram recebidos à bala.

Ele correu ao editor para contestar a versão oficial. Pois havia visto o ataque e os corpos sem nenhuma arma em volta. Sabia que Arroyo e Pomar morreram sem chance alguma de reação. O editor o proibiu de escrever qualquer matéria a respeito. Desmentir os militares seria loucura. Saiu-se com um provérbio de efeito: "Molhar o leão é fácil, enxugá-lo é que são elas."

Julho de 2014
Ele está em casa assistindo aos jogos da Copa do Mundo. Não tem pressa alguma em fazer nada. Faz tempo que deixou de ser um jornalista de papel. Hoje é colaborador em um portal digital de notícias. Escreve sobre qualquer assunto, excetuando Política e História. Da primeira, quer distância amazônica. Da segunda, mantém um difuso sentimento de culpa. Naquela manhã de 1976, na Lapa, ele testemunhou a verdade e não pôde escrever sobre ela.

É claro que depois da Ditadura, outros escreveram. Mas ter perdido aquele furo, matou o repórter que havia nele.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

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