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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Volta!


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Minha querida,

Desde a nossa conversa de ontem, não me sai da cabeça a frase que li na traseira de uma van, à minha frente no sinal vermelho: “viva sem dor”. Era propaganda de analgésico, que em sua tolice atropelava o momento amargo e desolado que eu estava vivendo. Já faz um tempão, mas ficou marcado pela ironia. Como viver sem dor, se ela é parte do pacote? Como identificar a alegria e o prazer sem o contraponto da dor e do sofrimento? Como entender a luz sem a treva? Simples assim.

Queria ter a capacidade de dizer ou fazer algo que te buscasse lá no fundo desse abismo oceânico e te fizesse flutuar de novo. Que te devolvesse a deliciosa capacidade de olhar à volta e, em dois minutos, produzir comentários demolidores sobre o senso comum e a mediocridade, seus e de todos nós, porque, na sua grandeza, você se sabe tão limitada e pequena quanto a humanidade inteira. Que te reconectasse com o riso e o prazer, como quando ríamos sem parar de qualquer bobagem, sob as árvores à beira do lago do clube náutico.

Mas não tenho. Espero muito que alguém tenha, e consiga derreter essas grossas camadas de desamor, incompreensão e tristeza. Nem mesmo sei o que te dizer, só sei como me sinto quando penso em você: com o coração espremido. E tenho pensado muito.

Aqui, do lado de fora de você e de mim, há um lugar enorme e complicado, difícil de ser decodificado, inóspito, povoado de gente mesquinha e superficial. E com muita dor sobrando pra todo lado. Mas tem crianças, mixiricas, passarinhos, arroz com feijão, céu azul, livros, ipês floridos, chocolate, maçãs, chuva, doce de leite com coco, pijama molinho, tênis surrados, filmes, amigos, torta de frango. Tudo esperando por você. Volta pra cá!

* * * * * *

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

3 comentários:

Anônimo disse...

Como se poderia reconhecer, sentir, gozar o prazer, a alegria de viver sem o reconhecimento da dor, da saudade, da angústia, do sofrimento ? Como se poderia gostar do vermelho sem conhecer as cores do arco-iris ? Cor e dor, palavras tão próximas e tão distantes......Como agradecer ao Criador a chuva benfazeja que caiu ontem sem, antes, sofrer o sufoco da secura desértica ? São.....como cantava a Júnia , anos atrás, as cousas da vida que fazem a gente viver...........
Parabéns pela leveza que trouxe a assunto tão pesado. Parabéns ao Fernando também.
Beijos da Mummy Dircim

Pastora Leila Müzel dos Santos disse...

Mummy Dircim comentou com maestria essa tua postagem fantástica! Minhas sextas feiras não seriam as mesmas sem essa conversa calada entre nós três!
beijos amigas queridas!

Anônimo disse...

Sem palavras...num mundo onde imperam a superficialidade, a busca pelas facilidades, os kits de felicidade comprados por qualquer preço e a fetichização do ser humano, encarar as contradições da vida parece tarefa hercúlea. Seu texto é um desafiador convite à busca pelo sentido pleno da vida humana! Bjs.Olga

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