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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Vivo ou morto

por Celso Vicenzi*

Uma das cenas clássicas dos antigos filmes de faroeste era o cartaz de “Procura-se, vivo ou morto” com o valor da recompensa. No Brasil do século 21, não há esse tipo de cartaz, mas vive-se situação semelhante. Todos os anos, instituições bancárias e o INSS vão à caça de uma legião de idosos e idosas que recebem pensões ou aposentadorias. Para não perderem benefícios, precisam provar que estão vivos.

Em princípio, não deveria haver tanta dificuldade assim por parte de diligentes organizações, públicas ou privadas, para identificar quem está vivo e quem está morto. Verdade que alguns estão quase mortos de fome. Mas, repare bem: mesmo assim, continuam vivos!

Pense num idoso de 80, 90 anos, com dificuldade de locomoção, saúde debilitada ter que se deslocar até uma agência, às vezes distante, enfrentando o trânsito, com risco de queda e atropelamento, só para dizer: “Olá! Estou vivo, não morri!”. E, com mãos trêmulas, assinar mais um papel para provar que não é um fantasma.

A Constituição é clara: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. No entanto, para tentar impedir que alguém receba pensão ou aposentadoria indevida, pune-se, preventivamente, todos os idosos, quando seria mais justo aplicar as sanções do Código Penal a quem cometesse, de fato, esse tipo de crime.

Há casos, também, em que, por um “erro do sistema” – sempre ele! – um vivo é declarado morto. A sua presença (respirando!) e os documentos que apresenta valem muito pouco para as autoridades que, geralmente, preferem confiar em um computador que informa ser você uma assombração. Até, pelo menos, demorada prova em contrário.

Há leis para todos os gostos. Será que não há umazinha só que possa ser acionada para que milhões de idosos não precisem se submeter, anualmente, a esse ritual humilhante? A sensação, principalmente para os mais longevos, é a de que a Previdência sente-se ligeiramente incomodada com tanta saúde, e conta os meses, dias e horas para vê-los deitados em caixões.

Parece-me, embora leigo, que é algo muito próximo do conceito de assédio moral, aplicado a trabalhadores. Mas, e o que dizer de ex-trabalhadores submetidos a situações constrangedoras e repetitivas? A humilhação é um sentimento de menosprezo, inferioridade, ultraje, que compromete a dignidade humana. E estudos provam que é causa de dor, tristeza e sofrimento. Ter que provar, ano após ano, que se está vivo, afinal, não é humilhante?

Espero estar vivo para ver o Brasil pôr um fim a essa crueldade. Quem sabe o Ministério Público se compadeça da condição desses cidadãos e cidadãs que merecem um pouco mais de descanso e respeito nessa etapa da vida, e resolva abraçar a causa. Em troca, receberá, de “honorários”, emocionados e sinceros abraços.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

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