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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Caixa postal


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna

No meio do feriadão de Carnaval, um almoço inesperado, no miolo do interior paulista, aonde cheguei com amigas em cujo carro me enfiei quando soube de seus planos. A mesma região de onde parti, há muito tempo, rumo ao cerrado transformado em cidade futurista, cheia de vícios e defeitos velhos, velhíssimos.

A ideia para o domingo era uma rápida visita à tia Vanda, uma simpática senhora nonagenária, e que ela nos acompanhasse ao almoço num restaurante. Plano que ela ignorou solenemente, oferecendo-nos delícias italianas caseiras e um daqueles momentos que parecem suspensos no tempo e no espaço. A conversa tecia uma teia de nomes de parentes, casamentos, descasamentos, gestações, partos, mortes, netos, bisnetos, tantos, que desisti de tentar acompanhar.

A certa altura, declarou: "se eu pudesse reencarnar, queria nascer homem". Perguntei por que, e ela: "por causa da vida boa deles". Exatamente as mesmas frases que ouvi de minha avó há mais de cinco décadas. Um tratado inteiro sobre assimetrias de gênero.

Horas depois, chegou-me a notícia paralisante sobre a morte trágica de duas mulheres minhas conhecidas e estimadas, num acidente de carro. Ambas se ocupavam da dura tarefa de empurrar ladeira acima políticas públicas que permitam às descendentes da Dona Vanda uma "boa vida" nesta atual encarnação. Seu legado não será desperdiçado.

Mais um dia no calendário momesco, desfrutado num jardim de verde intenso, passarinhos e morcegos, cercada de gente acolhedora e generosa. Nada se compara à intensidade de convivência e à comilança que rola nas cidades pequenas. Arroz integral, legumes assados e peito de frango branquelo, só depois de voltar para casa.

Numa cidade próxima, onde fui criança e adolescente, reencontrei o inesquecível professor de francês, localizado graças ao Facebook. Algumas horas de enorme alegria e uma emoção dessas que a gente economiza por pura tolice. No caminho de volta, minha Elis interna cantava: "Eu quero encontrar as pessoas, de mãos e de olhos abertos... eu preciso encontrar as pessoas, ficar de mãos dadas com elas, conversar com a boca e os olhos do coração."

Foi tudo muito rápido lá, mas por sorte pude caminhar alguns minutos pela belíssima praça ladeada por oitizeiros centenários, a cuja sombra lambi incontáveis picolés vermelhos. Mais alguns passos, e eis a agência dos correios aonde ia todos os dias abrir a caixa postal, a mais prazerosa incumbência familiar de que tenho memória.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

4 comentários:

Nômades pelo mundo. Marina e Edison. disse...

Amo reencontros amigos e familiares! Trazem experiências antigas e memoráveis!

Pastora Leila Müzel dos Santos disse...

Olá Júnia! Viajei contigo nesse texto delicioso... parabéns! beijos de saudades de tempos memoráveis...

Anônimo disse...

Depois de ler este lindo texto com um conteúdo que conheço tão bem, gostaria de compartilhar o prazer que tive de conhecer a autora . Espero que possamos nos reencontrar. Bjo Lalita

Unknown disse...

Também espero, Lalita. Prazerzaço.

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