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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Quer lutar?

por Carlos Conte*

Tem gente que gosta de começo de ano. Eu não. Pra mim só melhora depois, talvez semanas, meses depois, quando já não me lembro mais do baque que é voltar de férias e recomeçar. Recomeçar sempre!, diz o personagem Carlos do filme “São Paulo S.A.”. O título do primeiro roteiro escrito por Luiz Sergio Person era “Agonia”.

Ao voltar de viagem constato, com pesar, que a vida só recomeça se houver trabalho. Os cães estão desesperados de fome e carência, há um rato na lavanderia, a calçada da frente está cheia de mato e sujeira, meu quarto precisa ser arrumado (e essa arrumação vocês não imaginam como é difícil); há um ano inteiro de trabalho pela frente, e então me dou conta de que as férias nunca são o bastante e que este novo ano só vai mesmo pegar no breu no momento em que eu recolher o primeiro cocô do quintal e jogar no lixo o feijão que está podre na geladeira desde o ano passado.

Por isso adotei um instrumento de autoajuda bem curioso: estou usando uma foto do Bukowski (outro Charles) como plano de fundo da área de trabalho do meu computador. É uma das poucas fotos em que o velho não aparece com um copo na mão: está de pé, de frente para o fotógrafo, em posição de guarda, chamando pra briga. Assim, toda vez que eu abro meu laptop de manhã, dou de cara com o velho safado prestes a me acertar um jab.

– Quer lutar?
– De novo, Buk?...
– Em guarda, garoto!

E então é preciso fazer alguma coisa, é preciso reagir, matar um leão por dia, recolher as contas na caixa de correspondências, escovar os dentes, pagar as contas que eu acabei de recolher, trabalhar. Recomeçar. Como Sísifo e sua pedra maldita, recomeçar a cada dia. E nisso o Buk me ajuda, por incrível que pareça.

Vão me dizer que ele era um péssimo exemplo: alcoólatra, agressivo, machista. Na verdade, ele mesmo diria isso, porque ninguém melhor do que Charles Bukowski para destruir Charles Bukowski: “Bukowski chorou em hotéis que eram verdadeiras espeluncas, Bukowski não sabe se vestir, não sabe falar, tem medo de mulher, sofre do estômago, vive assustado, não gosta de dicionários, freiras, moedas, ônibus, igrejas, bancos de praça, aranhas, moscas, pulgas, tarados; Bukowski não foi pra guerra. Bukowski já está velho... ; se fosse macaco, seria expulso do convívio da espécie”.

Como ele mesmo diz nos textos autobiográficos, era um zero à esquerda no quesito “administrar a própria vida” – aluguéis sempre atrasados, pilhas de garrafas de vinho em cima da pia, nenhuma cueca limpa para vestir... Pior quando ficava sem luz por falta de pagamento. Pior quando estava de ressaca (isso sempre). A vida pode estar sempre pior – mas o velho Buk tirava de letra, rindo dos outros e de si mesmo, sem autopiedade. Quando acordo de manhã, não espero que me deem a mão...

– Quer lutar?
– Que tal conversar antes?
– Nada disso, garoto, conheço você e suas desculpas. Em guarda!
– Vai encher o saco de outro, porra!... – e tento correr para longe daquela visão dos infernos.

Mas não há saída. É preciso enfrentar. Por mais que meu corpo implore “Não vá, por favor, não vá!”, num misto de preguiça e desesperança, lamentando o fim dos sonhos, o fim das férias, lamentando, acima de tudo, o fato de um dia ter saído do útero quente e confortável de mamãe, é preciso levantar guarda e ficar atento antes que seja desferido o primeiro golpe.

– Quer lutar?
– Desiste, Buk, já era. Eu sou mesmo um perdedor... Que foi? Tá rindo do quê?
– Só agora você se deu conta de que é um perdedor?
– Vai se foder, velho brocha!
– “Todo homem é vítima de um meio que se recusa a compreender sua alma”.
– Li isso em algum lugar...
– Claro que você leu isso em algum lugar! Fui eu que escrevi.
– Pois é, você é chato mas pelo menos escreve bem...
– Eu sou o melhor de todos, garoto!
– Ai!
– Levanta essa maldita guarda!
– Meu nariz, filho da puta!...

* * * * * * *

Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.

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