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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Uma presidenta a caminho do Campo da Pólvora

Dilma parece dirigir tranquilamente rumo a uma explosão. Alckmin e Eduardo Cunha têm algumas toneladas de dinamite para emprestar. Estamos vivendo uma situação pré-revolta?

por João Peres*

Poucas imagens definem tão bem um governo. Poucos governos são tão infelizes em seu autorretrato. Em 11 de junho de 2014, Dilma Rousseff foi a Salvador. Era um evento de grande força. Depois de anos e anos de enrolação entre prefeitura e governo da Bahia, o metrô da capital entrava em operação graças aos recursos enviados pela administração federal. Uma data perfeita: às vésperas do começo do Mundial, um retorno efetivo dos investimentos provocados pelo evento da Fifa. Uma agenda positiva a poucos meses de eleições que se avizinhavam difíceis em todos os níveis.

Os assessores de Dilma planejaram uma foto tradicional para o momento: coloca-se a presidenta dentro da cabine de operação de um trem, ela sorri, acena e vai embora, com missão cumprida. Nenhum assessor ou ministro, porém, parece ter notado uma piada de caráter tragicômico – ou, se notou, não contou. O fotógrafo Roberto Stuckert Filho, integrante do clã que há décadas registra os poderosos de Brasília, flagrou a presidenta a caminho do Campo da Pólvora. A culpa não é dele, obviamente. Mas ninguém por ali parece se ter dado conta de que o nome da estação a que se dirigiria aquela composição era esta infeliz coincidência do destino. “Em teste”, “Viva Salvador”, “Metrô”: qualquer nome escrito no letreiro serviria. Até “Bonde do ACM” estaria melhor. Havia meia dúzia de nomes de outras paradas que poderiam ter sido usados. Não, não foram: Dilma comandou um trem que rumava para um lugar, digamos, explosivo.

Pesquisar fotos da presidenta para uso em reportagens sempre foi difícil. No período Lula havia sempre dezenas e dezenas de opções. Com Dilma, não. Predominam as imagens carrancudas, reveladoras de um corpo endurecido, sem grande capacidade de expressão. Quando não se vai por esse caminho, a seleção oficial de imagens prioriza as que ela aparece no corpo a corpo, em fotos posadas ao lado de populares ou de uma claque que claramente não está à vontade com a cena.

Durante as eleições, a equipe de campanha tentou fazer de Dilma o seu oposto: não havia nos álbuns de imagens uma foto que não mostrasse um largo sorriso. Era uma candidata eternamente sorridente numa campanha em que havia poucos motivos para isso. Quem procurava por retratos simbólicos da gravidade do momento tinha de apelar a agências de notícias, ainda que, por vezes, estas pecassem por fazer o caminho exatamente contrário ao da versão oficial.

E eis que um belo dia, no programa eleitoral na televisão, surgiu a foto de Dilma na inauguração do metrô de Salvador. A repetição de um erro simbólico revela o que todos já sabemos, ou seja, que a assessoria de comunicação do entorno da presidenta é distraída, para dizer o mínimo. Olhada em perspectiva, aquela imagem intensifica seu caráter tragicômico. A presidenta exibe seu sorriso amarelo, alheia a seu entorno, na sua antinatural alegria. Junto com ela está a maquinista. Não está ali Aloizio Mercadante, o ministro-chefe da Casa Civil, afeito a aparições públicas forçadas por sua cada vez menos implícita pretensão de ser candidato ao Planalto em 2018. Não estão ali seus ministros das Cidades, do Planejamento, da Fazenda. A presidenta está sozinha enquanto toma o rumo da explosão.

Não parece que se passaram apenas oito meses desde que foi feita. A fotometáfora produzida ao acaso pela equipe presidencial não poderia ser mais adequada a nosso presente. Dilma dirige um trem que vai para o Campo da Pólvora sem que tenha sido informada por seus assessores. Está ali, dirigindo alegremente, sem notar que caminha à santíssima merda. Quem está do lado de fora abana as mãos, dá tchauzinhos, torce para que os explosivos estejam bem longe do ponto de partida para que se salvem.

O problema é a impressão de que estamos todos dentro daquela cabine. Ou quase todos, porque os mais espertos sempre se salvarão. Dilma, com o devido respeito, não cabe nesse último grupo. Como todos sabemos, faltam-lhe comunicação, habilidade política, rapidez administrativa, confiança nos outros e uma série de outros quesitos que fazem do presidente um estadista. Dela nem pedimos tanto. Não era possível esperar nada além de um aperfeiçoamento do período anterior.

Caro eleitor de Aécio Neves, terás mais ajuste fiscal do que querias. A pesquisa Datafolha divulgada no último fim de semana apenas quantifica o que já se sabia: quando o candidato vencedor implementa a agenda do candidato derrotado, causa um estrago imenso. Nela, a taxa dos que consideram o governo Dilma ótimo ou bom despenca de 42% para 23%, e os que o enxergam como ruim ou péssimo vão de 23% para 44%. Sim, uma exata inversão de curvas. A maior queda se observou entre os cidadãos com escolaridade e renda mais baixas, desmentindo pela enésima vez a tese de Fernando Henrique Cardoso de que os “grotões” são mal informados e acéfalos. A presidenta perdeu força também no Nordeste e no interior, regiões que lhe foram extremamente favoráveis na disputa eleitora.

A plataforma de corte de direitos trabalhistas, aumento de impostos e redução de investimentos fez, como era fácil prever, com que a população reforçasse a ideia de que entre o discurso e a prática nada existe. 46% dizem que Dilma falou mais mentiras do que verdades durante as eleições, 47% a consideram desonesta (contra 39% que pensam o contrário) e 54% dizem que é falsa, um crescimento de 41 pontos de 2012 para cá.

As explicações encontradas pelo entorno presidencial para a queda drástica na aprovação vão do ridículo ao bizarro. "Já convivemos com períodos de baixa aprovação nesses últimos 12 anos e mostramos que, com trabalho, somos capazes de recuperar", disse o ministro Miguel Rossetto, da Secretaria-Geral da Presidência, esse cargo que parece ter sido criado para transmitir explicações implausíveis.

Mais infeliz é o argumento de que faltou comunicação para deixar claro ao povo que os ajustes feitos agora são necessários para manter a trajetória de criação de postos de trabalho e aumento de renda. Claro, faz todo sentido: todos vamos entender que um pouco a mais de desemprego e um pouco a menos de dinheiro são bons, especialmente para garantir que o mercado financeiro aumente seus lucros mediante o aumento da taxa básica de juros e o desestímulo ao investimento produtivo.

Dilma não dá sinais de que tenha capacidade para reverter o divórcio que está ajudando a promover entre a população e o mundo da política institucional. É bem verdade que essa separação começou muito, muito antes que ela surgisse em cena, mas o cruzamento de uma série de fatores históricos e conjunturais pode fazer com que seja agraciada com o direito de jogar a pá de cal numa relação desgastada. A água de Geraldo Alckmin e a Câmara de Eduardo Cunha se somarão à herança mal resolvida das manifestações de 2013 e ao inesperado desgaste da imagem presidencial, catapultado em novembro e catalisado em janeiro.

Se a sondagem divulgada pela Folha de S. Paulo guarda espaço para uma surpresa, esta reside no fato de que Alckmin e Fernando Haddad também sofreram um enorme desgaste. Cada um por seus motivos, voltam todos a mergulhar na vala em que estiveram metidos em junho e julho de 2013. Vejamos os resultados: Dilma foi reeleita de forma sofrível graças à ajuda de uma militância que trabalhou aguerrida e calada, e aos esforços de alguns quadros políticos graúdos; Haddad perde a cada dia mais apoiadores e sofre resistências dentro de seu partido, não sabendo nem mesmo se concorre a um novo mandato em 2016; Alckmin ganhou mais um mandato de governador com os dois pés nas costas.

A conclusão que se tira disso é a óbvia: o tucano, ou as forças que ele representa, sairá deste buraco do mesmo jeito que entrou. Dilma, Haddad e o PT, não. A incapacidade de autocrítica continua como regra entre o comando petista, mesmo depois que as eleições do ano passado mostraram um partido em decadência após um período de crescimento vertiginoso garantido por um líder político único. Passado o turbilhão, as correntes que demandavam uma refundação foram escanteadas, vencidas por aquelas que consideram que o mais importante é ajeitar-se na máquina do poder e garantir um lucro individual em detrimento de uma história de lutas e avanços.

O PT, ou os quadros que mandam no PT, continuam a fingir que não são meros emergentes no meio dos quatrocentões. Hoje são chamados para as altas rodas porque bancam o baile e as bebidas. Amanhã, afastados do poder emanado do dinheiro, voltarão a frequentar o rala-coxa e o batidão, onde receberão olhares reprovadores de quem se sente traído.

“Falando francamente: muitos de nós estão mais preocupados em manter – e se manter – nessas estruturas de poder do que em fazer a militância partidária que estava na origem do PT.” Luiz Inácio Lula da Silva parece ser o único líder político que reúne os predicados necessários para algum resgate da crebilidade das instituições. Durante o discurso pelos 35 anos de seu partido, celebrados em Belo Horizonte no último sábado, ele começou mal. Apostou na retomada do Fla-Flu eleitoral, aquele que diz que a oposição não tem moral algum para criticar um partido que transformou o país. Valeu-se da ideia de que os derrotados nas urnas estão buscando abertamente a via da instabilidade, o que é verdade, mas não é suficiente: a via da instabilidade é mantida aberta por um governo que em três meses contraria todo o discurso que o elegeu, que permite o fisiologismo e a corrupção, que perde o poder da criatividade.

Lula voltou a deixar claro que entende, ao menos nas linhas gerais, o que está acontecendo: seu partido perdeu contato com a sociedade, eliminou as pontes que o garantiam o papel da inovação, frustrou admiradores novos e antigos. “Há muito mais preocupação em vencer eleições, em manter e reproduzir mandatos, do que em vitalizar o partido. As direções, tanto as regionais quanto a nacional, ficaram prisioneiras dessa lógica. Tornaram-se burocráticas, pouco representativas da nossa base social, ou então apresentam uma representação meramente artificial de setores sociais.”

Se os números do Datafolha estiverem corretos, e os dados da realidade nos permitem dizer que são verossímeis, temos uma repetição de junho de 2013 em termos de desgaste do sistema político. Por enquanto, um junho sem ruas. Vivemos uma situação pré-revolta? Se tivermos uma revolta, como será? Certamente não será a sonhada pela esquerda, aquela que conduz a uma situação protorrevolucionária capaz de finalmente assentar bases para a construção de um novo Estado – por consequência, de um novo sistema político. A famosa “voz rouca das ruas”, capturada há quase dois anos por força da mídia tradicional, transforma-se na expressão mais bruta de nosso sistema educacional político inexistente. Na hora H, sem água, sem emprego, com inflação, a imensa maioria da população não terá como expressar o que deseja que mude, por qual caminho, com quais forças. Junte-se a isso uma vontade louca de golpe branco e está feita a besteira.

“Que saiam todos”, dirão, e a resposta do outro lado será uma reconfiguração que permita deixar tudo como antes, com a diferença de que o emergente terá sido expulso do clube dos quatrocentões. Lula poderia mudar essa realidade. Em inúmeras oportunidades falou sobre a necessidade de refundação do PT. Mas reverter essa situação depende de uma característica que nunca foi a sua principal: a ruptura. As informações de bastidores têm dado conta de que o ex-presidente foi excluído dos debates governamentais pela sucessora. Se for assim, abrem-se muitas alternativas. Lula pode trabalhar por dentro para miná-la, o que leva ao risco de que acabem todos tragados. Pode romper publicamente, tentando levar consigo o PT. Ou pode assistir de camarote. Seja com Dilma, seja com o PT, seja com os demais partidos, ele terá de mostrar ousadia para não entrar no trem que leva ao Campo da Pólvora.

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João Peres é jornalista e um dos editores do Nota de Rodapé 

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