.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Tic-tac-tac

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história. 


Nome: Gildo Macedo Lacerda
Nascimento: 8 de julho de 1949
Cidade natal: Ituiutaba - MG
Morte: 28 de outubro de 1973
Cidade final: Recife, PE
Causa da morte: tortura
Versão da ditadura: troca de tiros entre militantes

por Fernanda Pompeu  ilustrações Fernando Carvall

A ficha acima é fria como todas as fichas, sejam elas de nascimento, casamento, emprego, pedido de bolsa de estudo. Fichas são como aquelas pulseiras usadas nos hospitais. Nome do paciente e de sua mãe. Dependendo da idade, o aviso-alerta PERIGO DE QUEDA. Ou seja, as fichas também nos humilham. Feitas para particularizar, tiram nossa identidade. Pois parecem comprimir a história de uma longa vida num sujeito que tende a cair.

Mas, é claro, as fichas não são todas iguais. Essa do Gildo Macedo Lacerda diz algo de um garoto morto aos vinte quatro anos sob tortura. Morrer sob tortura significa morrer sofrendo de forma violenta. Não em consequência de uma cirrose hepática, de um câncer generalizado, ou em decorrência de uma batida de carro, desastre de avião, mordida de cobra. Morrer sob tortura significa que alguém matou você. Também no caso do Gildo - e de muitos outros e outras - o corpo foi desaparecido. Leia-se ocultado da família e dos amigos. Cortejo fúnebre que nunca foi visto pela caixa da padaria, pelo jornaleiro da esquina, pelo fantasma do Farol da Barra, pelo ascensorista do Elevador Lacerda, pelo país.

Qualquer ficha que traz a data da morte é uma espécie de congelamento. Significa que a partir daquele dia e hora, tudo na pessoa vira passado. Sem futuro. Mas isso não quer dizer que a gente não possa imaginar. Não possa trafegar no universo do se. Se Gildo não tivesse sido morto teria visto a filha nascer e crescer, teria se tornado avô. Não faço ideia em quem ele teria votado nas eleições de 2014. Mas isso tem importância?

O que interessa é que ele estaria com sessenta e seis anos e poderia se sentar à mesa e contar muitas histórias. Tristes, divertidas, edificantes ou irônicas. Certamente ele narraria muitas vezes a sua prisão, o medo que sentiu por ele e por sua mulher grávida que também foi presa. Contaria da violência sofrida, mas também do sonho, da juventude, do projeto de um Brasil melhor, mais justo. Com certeza, ele teria ouvintes. Gente nova que arregalaria olhos assustados para o país dos anos da ditadura.

* * * * * * *

Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

Um comentário:

Tessa Moura Lacerda disse...

Fernanda Pompeu e Fernando Carvall, eu gostaria de agradecer o texto e a arte! Obrigada por manter viva a memória de meu pai e de tantos que morreram lutando pela democracia.
Parabéns ao blog por esse trabalho de resgate da memória!

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics