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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 21 de julho de 2015

Família Feliz

por Fernando Evangelista*

Saí do elevador, percorri o corredor mal iluminado e no instante em que toquei a campainha, li a plaqueta pendurada na porta do apartamento: “aqui vive uma família feliz”. 

Quase como um pressentimento, pensei em inventar uma desculpa, dar o fora e cancelar o jantar. Mas seria indelicado da minha parte e, além do mais, eu estava curioso. O casal feliz havia anunciado, por telefone e por e-mail, uma “grande novidade” e eu seria o primeiro a saber.  

A anfitriã me recebeu com um sorriso largo, contrastando com as olheiras fundas e o semblante cansado. Ouvi o marido gritar da cozinha um seja bem-vindo de megafone. Abraços daqui e dali, Caetano na vitrola, vinho em cima da mesa, cheirinho de tempero, clima gostoso. 

Os dois se conheceram na graduação, se casaram, tiveram dois filhos, os filhos já estavam crescidos e cursando a universidade. “Passa tão rápido”, murmurei, enquanto observava as fotos da família nos porta-retratos da sala. E pensei na plaquinha da entrada e na minha má vontade com essas afirmações de felicidade. Afirmações ou ostentações?  

“Felicidade”, dizia minha vó, “é uma sensação circunstancial e não deve ser usada para humilhar os outros”. Vó Rosa viveu 101 anos e acreditava nas alegrias degustadas em silêncio e com humildade. Para ela, “alegria em voz alta só no carnaval e nas partidas de futebol”, coisas, aliás, das quais nunca gostou. 

Há, porém, por toda parte, dentro e fora das redes sociais, um mundaréu de felizes fanáticos, seres barulhentos que gostam de exibir, a toda hora e a qualquer passo, suas magníficas vidas de propaganda de margarina. Vidas sem problemas nem angústias. 

Além de colocar plaquinhas na porta, notas nos jornais, fotos nas revistas e posts no facebook, esse pessoal gosta de decorar o carro com mensagens e confissões edificantes. Já vi um assim: “Sou feliz porque sou católico”. 

– Afinal, qual é a novidade? – eu perguntei, voltando a minha atenção ao jantar, enquanto minha amiga me servia o ravióli de mussarela com manjericão.    
       
– Decidimos dar um basta – ela disse. 

E me perguntou se eu lembrava a frase de Benjamin Disraeli que repetíamos na época de faculdade.

Frase? Não, eu não lembrava. Pedi, educadamente, que eles parassem de enrolar e contassem de uma vez a grande novidade. 

A novidade começa com uma tia solteirona, que vivia sozinha em Ribeirão Preto (não lembro se tia dela ou dele), e que bateu as botas, foi desta para uma melhor, descansou. E, além de descansar, deixou uma herança para o casal. “Nenhuma fortuna”, explicou o marido, “mas nada desprezível”. 

Chegara no momento certo, a herança. Ambos estavam de saco cheio da rotina e dos empregos, da cidade violenta e engarrafada, com discussões domésticas acumulando mágoas e desgastando a relação. 

– Vamos pegar esse dinheiro inesperado – ela contou – vender os dois carros, vender o apartamento e curtir a vida.  

– Sério? E vão fazer o quê? – perguntei, pensando outra vez na plaquinha da porta de entrada.

– Talvez a gente compre um barco e veleje por aí.  

Dois anos se passaram. 

Nessa última quinta-feira, fria e chuvosa aqui no Rio Tavares, recebi uma carta deles e algumas fotos das Ilhas Seychelles, no Oceano Índico. Fiquei impressionado, em primeiro lugar, por descobrir que as Ilhas Seychelles realmente existem e, em segundo, por ver aqueles dois numa boa. Pareciam, talvez sem querer parecer, felizes de verdade.  

Com letra bem desenhada, no cantinho esquerdo da carta, na vertical, estava a frase que repetíamos no tempo de faculdade e que eu não lembrei naquela noite: “a vida é muito curta para ser pequena”.  

No dia seguinte, com olheiras profundas e sem heranças, sem carro e sem um imóvel próprio, acordei cedo e fui ao centro. Comprei uma plaquinha de madeira, em estilo de guirlanda de natal – absolutamente horrível – com os dizeres: “Aqui vive uma família feliz”. E preguei na porta de entrada da minha casa. Talvez funcione para alguma coisa, nem que seja para irritar os outros. 

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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótima crônica! Acho que também vou comprar uma plaquinha dessas e pendurar na minha porta. Talvez receba uma herança inesperada ou até um marido novo. ( Brincadeira)
Rosane Scheibe, Curitiba.

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