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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Máscaras


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Às vezes, parece que a morte está atrasada com as encomendas, de tanto que atravessa os caminhos à nossa volta. Nos últimos tempos, está caprichando no serviço, tanto entre pessoas públicas da minha estima quanto no círculo próximo ao coração. Sem falar no cenário mais amplo, da mortandade desnecessária e banalizada na atuação das nossas polícias e de grupos criminosos, das guerras civis, conflitos internacionais e atentados terroristas. Mas acho que nesses casos a personagem principal nem é solicitada, pois a produção no atacado dispensa seus trabalhos. E se repete a velha história dos humanos que eliminam outros humanos, em nome de que mesmo? Nem se lembram mais, com tanto sangue nos olhos e no juízo.

Mas ela pode ser também sabida, esperada e serena. Meses atrás, uma querida amiga partiu do nosso convívio, cercada de afetos e cuidados, numa passagem tranquila e suave. É certo que lutou com fúria para que seu corpo vencesse os ataques de uma doença insidiosa, num embate de força e determinação de ambos os lados. Venceu o lado mais experiente, que conhece há muito mais tempo os segredos dessa guerra.

Durante a noite em que estive muito tempo tratando de acolher a notícia da sua partida, ela esteve viva como nunca. Entre outras situações, em Buenos Aires, uns dez anos atrás, quando ambas participávamos de uma longa reunião de trabalho. Surgiu um raro momento de folga, e saímos num pequeno grupo a andar por Caminito. Sob um céu de aquarela e a luz amarelada do outono no sul, perambulamos por uma feira de artesanato e bugigangas turísticas. De longe ela avistou lindas máscaras venezianas expostas em determinada banca. Provou várias e escolheu duas, em meio a muitos comentários divertidos e gargalhadas, jamais economizadas. (Máscaras que talvez tenham sido usadas no embate final, para tentar iludir o outro lado.)

As dezenas de pulseiras, adornos inseparáveis do seu braço esquerdo, suas echarpes, brincos, colares, anéis, sapatos número quarenta, casacos que a protegiam dos intensos frios do norte, outros agasalhos, cintos e sabe-se mais o que, foram organizados pela família e repartidos entre as pessoas queridas, convidadas para uma celebração da sua vida, seguida de festa na sua amada Casa Azul que, na verdade, era de todos nós.

Se eu tivesse estado lá, teria procurado e trazido comigo as máscaras de Caminito. Nas horas de desconsolo, vazio ou desamor, com uma delas me olharia no espelho e me veria mais forte e preparada para encontrar aqui dentro a saída. A outra me caberia com perfeição para aqueles momentos em que o espelho devesse me devolver em dobro a alegria e o transbordamento dos sentidos.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

3 comentários:

Anônimo disse...

Querida mestra, sempre penso que é o pior da idade madura(digamos assim, na falta de outro adjetivo) lidar com as inevitáveis perdas, que sabemos dificeis de substituição nesta altura da vida. Mas que felicidade a Vida nos ter proporcionado esses encontros, né não? te gosto muito!

Anônimo disse...

Que beleza de texto! Expor assim seus sentimentos pela perda de alguém tão único e, ao mesmo tempo, falar disso de forma tão poética é muita coragem, sensibilidade e competência. Abços solidários.
Terê

Anônimo disse...

Herança emocional deixada pelos que se foram ? Dor de alma ? Solidão?
Benditos aqueles que deixaram um rastro de luz para a caminhada dos que aqui ficaram.
Bjs da Mummy Dircim


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