Aqui a íntegra da entrevista de Miguel Nicolelis do qual falei em postagem anterior. Publicada originalmente na Revista do Brasil, edição 37, julho. Entrevista realizada por mim e pela repórter Cida de Oliveira na sede da Associação Alberto Santos Dumont, em São Paulo. As imagens são do fotógrafo Jailton Garcia.
O paulistano Miguel Nicolelis dirige, desde 1994, o centro de neurociência da Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos. E é um dos fundadores do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), na capital do Rio Grande do Norte. A escolha de um local longe dos centros econômicos está ligada à sua batalha por descentralizar a produção do conhecimento, tornar a educação científica acessível às crianças das escolas públicas do Rio Grande do Norte. Seu grupo pesquisa origens da doença de Parkinson e como controlar ou amenizar seus efeitos no homem. Por esse estudo, que abre uma nova frente de pesquisas também sobre outras doenças do sistema nervoso, foi o primeiro brasileiro a ter destaque na capa da revista Science. Formado pela USP, Miguel Ângelo Laporta Nicolelis começou a ter seu trabalho projetado internacionalmente quando implantou uma prótese no cérebro de um macaco, por meio da qual o bicho moveu um braço robótico – com a “força do pensamento”. O trabalho foi listado pelo Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT) como uma das dez tecnologias que vão mudar o mundo. Ele e seus colegas registraram também sinais elétricos emitidos por neurônios do cérebro de uma macaca e os transmitiram ao laboratório do MIT, distante mil quilômetros, onde um braço robô foi movido por esses impulsos. Posteriormente, o registro da atividade neural da macaca enquanto andava numa esteira foi enviado, via satélite, ao Japão, onde um macaco andou sob o comando cerebral da primata americana. A ideia dessas experiências é fazer pessoas com paralisia voltarem a andar. Para Nicolelis, mais importante que o Prêmio Nobel que corre o risco de ganhar é fazer com que a educação seja não um objeto de mecanização de ordens, mas de geração e difusão de conhecimento. E de construção de uma nova democracia.
Como transformar a sociedade pela ciência?
A ciência gera conhecimento novo e processos geradores de mais conhecimento, tecnologias, métodos e novos produtos. Gera poder. No século 21, a democratização de uma sociedade depende da democratização dos meios de produção de conhecimento de ponta. Ao longo da História fomos levados a crer que só a elite pode fazer ciência nesses lugares misteriosos que a gente chama de universidade, esses espaços originados nos mosteiros da Idade Média, que têm acesso restrito, onde para entrar é preciso passar no vestibular. Com isso, boa parte da sociedade fica sem saber como é gerada a inovação. É a ciência que vai mostrar como enfrentar questões como as da Amazônia, do meio ambiente, das nossas reservas de óleo. O que faremos com tudo isso? Onde aplicaremos o dinheiro que será gerado pelas reservas do pré-sal? Os brasileiros têm de participar dessa discussão. Mas para participar devem ter acesso aos métodos de produção de ciência.
Mas como os brasileiros podem ter esse acesso? A ciência produzida não fica restrita aos cientistas e seus ambientes, universidades, laboratórios?
Geralmente sim. É como se ficasse numa redoma de vidro à qual a grande massa da população não tem acesso. Costumo dizer que estamos melhorando muito, mas tudo é ainda muito caótico. A universidade pública, por exemplo, ainda não é pública na entrada nem na saída. Embora tenhamos hoje a melhor gestão do Ministério da Educação que jamais tivemos na história do Brasil, ainda falta muita coisa. O problema é muito grande, acumulado em séculos de negligência.
Como o senhor avalia o aumento quantitativo da produção científica brasileira?
Esse aumento nos últimos anos deu-se pela exigência dos métodos de avaliação das universidades, que cobram produção em número, e não em qualidade. A qualidade de um trabalho científico não é medida apenas localmente, e sim pelo seu impacto no mundo da ciência, que é muito objetivo. Por isso o impacto desse aumento na vida do país ou do mundo é questionável. Apesar de aumentar o número de pesquisas, o Brasil é um dos países que menos patenteiam propriedade intelectual e menos produzem inovação científica. Ainda temos uma visão cartorial da ciência, com algumas agências de financiamento brasileiras impondo uma burocracia absurda, que não pode se aplicar ao projeto de um cientista.
Isso é só no Brasil ou lá fora também?
O Brasil é campeão nisso. Precisamos construir mecanismos ágeis de fomento, de operacionalização. Não adianta ter só o dinheiro. Seria um exercício muito interessante, para vocês, pegar o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia e ver quanto dele foi executado. Nem os caras lá dentro conseguem se livrar da burocracia.
O senhor declarou numa entrevista que o ministro da Ciência e Tecnologia deveria sentar do lado do presidente da República. Por quê?
Na minha modesta opinião, os ministros da Educação, Saúde e Ciência e Tecnologia – a trindade – deveriam sentar do lado do presidente. E bem lá atrás o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, fazendo contas. E temos gente altamente preparada, nessas três áreas, que tinham de receber o orçamento que determinassem. E então apertaríamos o cinto em outras coisas para garantir o cumprimento das prioridades, que trarão retorno para o país e para a humanidade. Há cientistas brasileiros brilhantes aqui que não precisavam sofrer para ser financiados, porque contribuem para a humanidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, a ciência e a tecnologia estão no centro do debate nacional e são tema da conversa do café de todo mundo.
Independentemente de quem esteja no governo?
Sim, e a grande vantagem da academia americana é que lá o cara que nasce na periferia de Nova York, por exemplo, tem chance de ser um professor universitário. Aqui, a ciência brasileira foi construída pela elite. Isso mudou um pouco, mas não o suficiente para um menino da periferia sonhar em ser cientista. Os meninos da periferia de Natal já têm mais chances porque nós desmistificamos a ciência para eles. Antes, quando perguntávamos o que queriam ser, respondiam jogador de futebol, atriz, modelo. Hoje há quem queira ser ortopedista, astrofísico, geólogo, químico, professor. Eles constataram que professor não é inimigo, e sim o adulto em que podem confiar porque vai lhes abrir portas.
O senhor convive com crianças em Natal e com neurocientistas num laboratório americano...
Ambas as realidades estão conectadas. Em nosso laboratório estudamos o cérebro e como é o processo de educação do cérebro. Então a neurociência e a educação andam lado a lado, como qualquer outra coisa que envolve a atividade humana. Porque tudo que vem do ser humano, do ponto de vista de produção motora-cognitiva-intelectual, tem como final da cadeia o cérebro. Os sistemas políticos, o mercado financeiro, a arte, enfim, tudo depende das propriedades biológicas do nosso cérebro. O mundo inteiro deveria ter interesse em saber como nosso cérebro funciona porque ele é a essência do que somos e explica tudo o que fazemos.
Foi o que o trouxe de volta ao Brasil?
Quando decidi voltar para o Brasil e fazer alguma coisa sabia que seria tudo muito difícil. Cheguei a ser tratado como estrangeiro por alguns setores das universidades. E eu só decidi entrar na briga porque queria disseminar a ideia de que a ciência é agente catalisador da transformação social, começando pela educação. Se eu quisesse que essas crianças passassem a ter prazer em aprender, em se envolver com a investigação científica, a única maneira seria colocá-las em contato com o critério lúdico da investigação científica. Criança adora ver a reação causal das coisas. Se uma pilha de blocos cai, ela logo percebe que é necessária uma estrutura para manter os blocos em pé – coisa que dificilmente perceberá em uma aula teórica, com o professor falando um monte de coisa que terá de ser reproduzida numa prova.
Como é esse trabalho em Natal?
A formação de professores levou seis meses. Nossa escola vai fazer três anos e é um esforço pequeno ainda. Atendemos mil crianças, mas queremos levar a experiên¬cia para o Brasil inteiro. Toda escola pública deveria ter aula em período integral. E a aula deveria ser diferente, livre desse modelo da autoridade, de o professor vomitar a “verdade” que deverá ser recitada pelo aluno. A verdade tem de ser descoberta. E esse é um método científico, que faz parte da nossa vida o tempo inteiro. É o caso de quem empresta dinheiro e não recebe. A chance de emprestar de novo diminui. Isso é experimento. Nossa vida inteira é assim. Quando andar de bicicleta pela primeira vez a criança vai cair e pôr a rodinha. Quando percebe que consegue, tira a rodinha. Essa realidade lúdica deve ser levada para dentro da sala de aula. Ou para os laboratórios de ciências para criança, embora muitos duvidassem que isso pudesse acontecer no Nordeste. O talento está lá. Está dentro das crianças e precisa ser garimpado. Por gerações temos negligenciado, abandonado e desperdiçado talentos. Nunca assumimos a responsabilidade de oferecer para as gerações futuras algo melhor do que nós tivemos. É uma visão de colonizados que ainda prevalece, a de que o futuro não vale a pena. Nunca assumimos um pacto de renúncia a certas coisas do presente para oferecer algo melhor para os que ainda nem nasceram. Nossos filhos, netos, bisnetos.
O senhor teve encontros com o presidente Lula para apresentar o projeto?
Eu conversei muito com o presidente. Senti que ele entendeu para onde estamos indo, e que aquilo era um experimento não de cientista, e sim de nação, de como o Brasil pode ser esse país que tem chance de acontecer, de entrar para a História e ser verdadeiramente de todos.
O senhor vê as pessoas, no exterior, manifestarem alguma visão sobre o atual momento do Brasil?
Quando viajo e encontro colegas franceses, alemães, russos, chineses, noto que estão todos desencantados com seus políticos e seus governos. Muitos dizem: “Sorte sua que é do Brasil, onde as coisas vão acontecer, que alimentará o mundo, produzirá energia limpa e ainda manterá o ambiente de pé. Como a gente vai conseguir criar uma democracia feliz, onde as pessoas vão poder perseguir a felicidade? Vocês têm um presidente que é admirado no mundo inteiro”. E então eu penso: se os brasileiros ouvissem metade do que ouço pelas minhas viagens, certamente se encantariam.
Por que não sabemos de tudo isso?
Porque a informação não chega. Abrimos os jornais brasileiros e as manchetes são desanimadoras, não celebramos os avanços. Há frases ditas por brasileiros que eu odeio, como aquelas do tipo “só podia ser no Brasil mesmo”, ou “se a gente fizer assim, vira coisa de Primeiro Mundo”. Vivemos nos depreciando. O Primeiro Mundo está despencando, entrando num buraco negro e não sabe se vai escapar. A Europa tem problemas seríssimos, os Estados Unidos estão desesperados, precisam sair do problema que eles mesmos criaram. Sobrou quem para ser Primeiro Mundo? Nós somos o Primeiro Mundo. O Primeiro Mundo do amanhã, mas para isso precisamos acreditar em nós. O nosso complexo de inferioridade, tão gigantesco, vem do sistema educacional, que cria carneiro, e não leão, que cria gente que obedece a ordens.
As ordens não são necessárias no aprendizado?
Na escola, eu tinha de cantar o Hino Nacional porque era uma ordem, e não o meu desejo de exaltar a minha pátria. Um milico em algum lugar me mandava fazer isso. Eu tinha de decorar e cantar o Hino à Bandeira e o da Independência por decreto militar. Temos de incentivar nossas crianças a ir para a rua, a achar a cura do câncer, a construir uma democracia melhor, a remover esse entulho mental de inferioridade que acumulamos ao longo da nossa história. Por que o brasileiro não pode almejar qualquer coisa? Eu entro no avião e ouço: “O seu país é demais”. Aí viajo dentro do Brasil e metade do que eu ouço é depreciação.
Privilegiamos a mediocridade?
E ainda promovemos o que não tem relevância, a cultura da celebridade, do efêmero. Aí as pessoas dizem que no mundo inteiro os jornais estão desaparecendo, que há uma crise na mídia. A mídia criou essa crise quando não reportou o fato, quando não se comprometeu com a população, e transgrediu esse elo que havia ao abrirmos um jornal e acreditarmos no que líamos. O povo não é bobo. E o New York Times tem de retratar 180 páginas de reportagens falsas sobre as razões que levaram os Estados Unidos à Guerra do Iraque. Quem vai acreditar no jornal? E esse fenômeno acontece aqui com sérios jornais que trazem coisas sem relevância para a vida de cada um de nós. Essa quebra destruiu a nossa ligação com os intermediários que transmitiam os fatos para nós. Agora não queremos mais intermediários. A internet, apesar de todos os seus defeitos, está se transformando num lugar onde se pode tentar achar o que está acontecendo. O intermediário sumiu. Os políticos deveriam começar a se preocupar, porque o mundo inteiro não acredita mais nas promessas de eleição, nos congressos. As pesquisas de opinião da Europa, dos Estados Unidos e daqui mostram que os poderes representativos estão no fundo do poço. O pessoal precisa ficar de olho aberto porque ainda vai aparecer alguém com uma fala nova de representação, mais efetiva, barata e honesta. E o intermediário também pode sumir rapidamente.
Como é a vida nos Estados Unidos de um brasileiro que adora as coisas do seu país?
Eu não moro mais só nos Estados Unidos. Como agora tenho a chance de vir para cá mais vezes, tudo ficou mais fácil. Difíceis foram os primeiros 15 anos, eu sabia que só poderia voltar para o Brasil depois que tivesse construído algo fora. Então foi muito difícil. A cultura, o clima, a comida e as pessoas são diferentes. Todo brasileiro que tem visão pejorativa do Brasil deveria passar dez anos de exílio em algum lugar. Voltaria muito melhor. Porque o Brasil não é só São Paulo. O país é, na verdade, centenas de outros países. É impossível crescer na cidade de São Paulo e entender o Seridó, o sertão do Piauí, o interior da Bahia, ou mesmo a capital do Rio Grande do Norte.
Somos um imenso país de estrangeiros uns para os outros?
Embora todos falem português, as emoções transmitidas são diferentes em cada região, em cada sotaque. E isso nos dividiu, quando deveria ter unido. Essa diversidade cultural, linguística, vegetal, biológica é que faz o Brasil ser o que é. Aprendi na escola que o Nordeste é a caatinga, é o deserto. E lá vi que cinco milímetros de chuva, uma garoa miserável, fazem com que os cactos floresçam imediatamente. E o que era caatinga virou jardim. E é o maior exemplo de sobrevivência que já encontrei na minha vida. Porque tudo que existe lá evoluiu para sobreviver a qualquer custo. A valorização da vida, seja de inseto, animal, humana, é gigantesca. E isso é exemplo de sobrevivência, não de miséria. Ninguém no sertão se sente miserável. Ao contrário, as pessoas que encontrei, crianças e adultos, jamais querem sair de lá. Quando o pessoal sai é porque não tem mais jeito. Aquele lugar pode se transformar num engenho, num grande motor da economia, se for olhado de maneira correta, se a ciên¬cia for aplicada da maneira que acredito que pode ser aplicada lá.
Lidar com a possibilidade de descoberta de tratamento para o Parkinson é algo que atrai uma expectativa e tanto, não?
Cada vez que um trabalho novo é publicado há uma grande expectativa entre as famílias dos pacientes. Sei disso porque meu avô teve Parkinson e sempre temos a esperança de que alguma coisa possa ajudar. Eu sempre tento manter as pessoas esperançosas quanto à possibilidade de uma nova terapia, mais barata, eficiente, fácil de ser implementada cirurgicamente, minimamente invasiva, com menos riscos e que, se os testes em primatas e os estudos clínicos tiverem os mesmos resultados obtidos em roedores, poderá ampliar significativamente o número de pacientes beneficiados com o tratamento.
Não se trata de cura?
De forma alguma. É o tratamento dos sintomas motores e de alguns dos efeitos mais dramáticos do mal de Parkinson. Essa terapia, até onde sabemos, não paralisa o processo neurodegenerativo que causa a doença. Mas, de qualquer maneira, são milhões de pessoas afetadas que poderão se beneficiar. Quando publicamos esse trabalho com destaque na imprensa científica, recebemos milhares de e-mails de todo o mundo. É algo sério, que deve ser lidado com muita responsabilidade e com muito cuidado para não alimentar falsas esperanças. Então, evidentemente, essa distinção entre cura e tratamento é uma das primeiras coisas que tentamos fazer. Nosso esforço é para acelerar o avanço dessas pesquisas para que possamos dizer, com total segurança, que chegamos ao ponto X.
O que é o pensamento? E o sonho?
O pensamento é uma corrente elétrica, uma tempestade se espalhando pelo cérebro. Só isso. É um relâmpago em milivolts, em milissegundos. Tudo o que fazemos vem de uma tempestade elétrica na nossa cabeça. Uma tempestade tão complexa e tão difícil de prever como as que acontecem no céu. Mas move tudo o que nós fazemos, como sonhar, imaginar, pensar, prever, andar, falar, correr, tudo. Essa é a raiz de toda a humanidade, centenas de bilhões de elementos disparando pequenas descargas elétricas que geram um campo magnético muito pequeno, mas mesmo assim poderoso o suficiente para gerar tudo que a história da humanidade já gerou. E o sonho é uma atividade do sistema nervoso que, pelo que se debate muito hoje em dia e pelas teorias mais modernas, responde pela recapitulação do que aconteceu recentemente com tudo o que foi acumulado ao longo da vida e gera reverberações elétricas quando dormimos. Ele tem várias funções. Se considerarmos pesquisas mais recentes, nada mais é do que a consolidação das nossas memórias.
Quais os próximos lugares em que o senhor pretende instalar um centro semelhante ao de Natal?
Nesse momento nem estou falado nisso porque Natal demanda muita energia. Estamos tentando criar um programa de autossustentação, capaz de manter o campus de Natal independente, com parceria público-privada. E ainda vivemos a luta contínua para manter a coisa viva. Então, apesar de ter essa ambição, só vou para outros lugares em outras condições. Se quisermos construir o segundo instituto em outro lugar, o lugar tem de querer e criar condições para receber esse know -how. Há outros lugares onde chegamos até a conversar, assinamos documentos, mas nada sai, é uma perda de tempo. É importante que as pessoas valorizem esse esforço e, se quiserem realmente embarcar numa parceria, saibam que existem responsabilidades de ambos os lados. Não é simplesmente dizer “eu quero um negócio desses aí”. Em Natal aconteceu dessa maneira porque era o embrião, a semente que tinha de florescer e está florescendo.
Seus estudos são financiados pelo governo americano e fundações de todo o mundo. É legítimo dizer que se trata de pesquisa brasileira?
Sim. A ideia saiu de um cérebro que nasceu na Bela Vista, foi escrita por alguém que cresceu em Moema, assinada por um pesquisador com diploma da Universidade de São Paulo e quem assina o cheque é um torcedor do Palmeiras. Se isso não é brasileiro, então não sei o que é. O fato de trabalhar nos Estados Unidos, numa universidade americana, financiada pelo governo americano e por fundações de vários países não significa que essa produção não seja brasileira. Primeiro de tudo porque ciência não é de ninguém, é da humanidade. No meu trabalho tem pesquisadores do Chile, Suécia, Canadá, Brasil e Estados Unidos. Mas, se for para definir uma nacionalidade, quem teve a ideia do trabalho, recrutou as pessoas e foi atrás de dinheiro veio daqui. E escreveu parte dele enquanto andava pela praia de Natal, na sede da associação, no Parque Antártica, no avião. Vem da nossa condição colonial a dificuldade de acreditar que tenhamos condição de fazer essas coisas. É como se alguém dissesse: “Mas o Oscar Niemeyer fez um monumento na Argélia. Será que é dele? Quem pagou foi um argelino”.
O que é mais fácil: o Palmeiras ser campeão do mundo ou o senhor ganhar o Prêmio Nobel?
Ah, não tem dúvida de que é o Palmeiras. O Nobel é um fetiche nacional. É como o Oscar. Para a ciência nacional ser legitimada alguém tem de ganhá-lo. Eu não tenho nada a ver com isso. Não acredito que isso faça a diferença que todo mundo acha que faz.
O Nobel não é importante para a ciência brasileira?
Esse prêmio só terá grande repercussão se for consequência de um projeto estratégico nacional científico em que dezenas de pessoas têm chance de ganhar. Ninguém ganha o Nobel sozinho. É como uma célula do cérebro que produz uma faísca elétrica. Mas para produzir a faísca teve uma série de células por trás dela que a alimentaram de informação para ela poder disparar. Eu não dou muita atenção para essas coisas porque acho que é uma glorificação muito egocêntrica do indivíduo, quando a ciência é o próprio time. É como um jogo de futebol. É possível ter um grande jogador no time e não ganhar nada. Mas, se há um time, há como ganhar. O capitão levanta a taça. Mas é o time que ganha o jogo. A nossa cultura é muito de dar a recompensa para um indivíduo.
Como os brasileiros poderiam contribuir com seus projetos?
Somos uma organização da sociedade civil com interesses públicos. Temos o nosso site (www.natalneuro.org.br), vivemos de doações mínimas, a partir de R$ 1. As pessoas entram no site, ficam enamoradas pelas perspectivas. Agora temos tentado ampliar nossa rede de doadores para não depender tanto dos grandes doadores. É uma campanha que vamos começar a intensificar porque acho que é uma forma alternativa de mostrar que é possível construir coisas com a participação de um grande número de pessoas que possam ser cúmplices de uma empreitada social, sócias de um sonho. Creio que todo mundo tem a chance de realizar um sonho, canalizar seu desejo. É a oportunidade que muitas pessoas não tinham e agora têm. Por isso se encantam. Mas acho que é importante que as pessoas ajudem começando a tomar ciência dos problemas da sua comunidade, a ser mais participativas em suas escolas, dos seus filhos, nas suas cidades, e começar a exigir tudo o que elas deveriam ter e não ainda não têm