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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Curtas Banais # 8


da inocência


ali pelos meus dezessete anos, eu era uma forrozeira de marca maior. não é piada não: a gente levava o forró a sério, muito a sério. treinava em casa com as amigas e dançava a noite toda pelo menos três vezes por semana, mesmo tendo aula às 7 da manhã do dia seguinte (como eu dormi no banco do colégio, meu deus…). a gente respirava dominguinhos, luiz gonzaga, elba ramalho e vários trios clássicos com repertório excelente, e desprezava as bandinhas de “forró universitário”. as meninas dançavam na ponta do pé, com os ombros retos e o quadril mole, uma mistura de forró com gafieira que sabe deus onde foi inventada – mas que era mesmo bonita de ver. desprezávamos os “pregos” e interrompíamos a dança no meio sem dó se o cara fosse muito ruim ou se estivesse dançando “armado” – eca!

era um bando de molecada entre 15 e 25 anos (as meninas um pouco mais novas, os caras um pouco mais velhos) que vivia aquele ambiente enfumaçado, de luzes coloridas e música regional, e fazia disso a coisa mais importante da vida. as letras das músicas, românticas e algumas vezes sacanas, sempre com muitas traições e dores de amor, somadas ao fato de todos estarem sempre em contato, e sempre vendo e sendo vistos na pista, fazia com que as histórias “de amor” fossem sempre umas novelas, uma diversão que você acompanhava – ou vivia – capítulo a capítulo, ou forró a forró.

bom, eu arrumei uma espécie de namoradinho, que era namoradinho só pra mim. feio, feio, feio, o cão chupando manga. mas dançava que era uma beleza e era – como todos os forrozeiros – um grande sedutor. o cara tinha uma mina por dia da semana, mas sempre as mesmas. acho que ele saía de casa pensando em quem preferiria naquele dia. eu – ai! – era uma delas. e por mais que sofresse quando o via agarrado com outra, não conseguia resistir quando chegava a minha vez. odiava as rivais e perdoava o cafa. bem como nas letras de forró.

uma vez fui na casa do fulano. debaixo de um fundo falso (!) no sofá, ele me tira uma balança de precisão, daquelas de “pesar ouro”, segundo ele. meio querendo se mostrar, é claro, afinal ele era bem moleque também. mas disse que “um amigo tinha esquecido lá”. eu nunca mais pensei no assunto.

aos poucos fui conhecendo o cara um pouco melhor. ele me dizia que trabalhava num cartório, e contava algumas coisas do trabalho. falava sempre sobre o “chefe”, e uma vez me contou, feliz, que o “chefe” estava muito satisfeito com o trabalho dele e ele tinha sido promovido. vocês já imaginam que quando eu passava na frente de um cartório na rua eu olhava pra dentro – quem sabe é nesse que o fulano trabalha?

o fim da história, eu quase não preciso contar: passado algum tempo, logo depois dessa história de “ser promovido”: jornal nacional. “preso hoje membro de uma das maiores quadrilhas de traficantes etc, etc”. era o fulano. e sabem que eu ainda me surpreendi?

Sofia Amaral é roteirista, produtora e, passados quase dez anos dessa época, perdeu um pouco da inocência. Mas ainda dança sozinha em casa ouvindo dominguinhos, com saudade das noites em que acompanhar o ritmo da sanfona era a única preocupação da vida.

Um comentário:

Lina disse...

Que encontro bom o que tive com seus textos. Leves, soltos, com rebolado único que deve vir aí da época do forró. Mas com certa birra de quem não usa letra maiúscula. Obrigada.

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