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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Em documentário Espírito de Porco volta do além para narrar sua dura trajetória

“Minha primeira motivação pra fazer Espírito de Porco foi o impulso de sair da zona de conforto”, explica Dauro Veras, jornalista, blogueiro e tuiteiro, um dos autores do documentário Espírito de Porco, entrevistado da vez neste Nota de Rodapé. “A ideia que o Chico Faganello me apresentou em 2005 era instigante: narrar a jornada de um porco na suinocultura industrial pelo ponto de vista do animal. Eu já tinha feito outros bons trabalhos com ele. Assim, o convite pra roteirizar e dirigir o filme em parceria me pareceu uma sequência natural e um bom aprendizado. Topei. Montamos o projeto, ganhamos o prêmio e passei os três anos seguintes lidando com merda”, relata Dauro. Explique-se, pois, a história. Para defender sua espécie das difamações lançadas contra ela ao longo de séculos, um porco recém abatido volta à terra, na condição de espírito. O Espírito de Porco defende os suínos narrando a sua trajetória, desde o nascimento num estado do Sul do Brasil que tem uma das maiores concentrações de porcos do mundo, até quando a sua carne vai para a mesa. O documentário discute a alimentação e a poluição; apresenta os humanos com quem convive e os problemas do seu cotidiano; defende o seu valor e busca semelhanças com as pessoas. E, na sua curta vida, revela algo que quase nunca é levado em conta: o ponto de vista do porco sobre a sua realidade. Esse ponto de vista nega, com veemência, que a sua espécie seja responsável pela poluição e pelas crises da suinocultura industrial, e deixa claro que os humanos têm uma responsabilidade maior pelas desgraças atribuídas ao porco. A seguir, o pernambucano, filho de cearenses, catarinense por adoção, pai de dois meninos, viciado em leitura, curioso e inquieto, Dauro Veras, fala mais sobre o documentário de 2009 vencedor de alguns prêmios e selecionado para participar da 11a. edição do Festival Internacional de Documentários "Santiago Álvarez in Memoriam", de 8 a 13 de março em Santiago de Cuba.

NR - Conte um pouco do que se trata o documentário Espírito de Porco para o leitor do Nota de Rodapé.
Espírito de Porco é um média-metragem sobre os impactos da suinocultura industrial no Oeste de Santa Catarina, uma das regiões que mais produzem porcos no mundo. O narrador é o espírito de um velho porco que volta ao mundo dos vivos para contar a saga de seus irmãos. O cineasta Chico Faganello e eu co-dirigimos esse documentário com R$ 60 mil do prêmio Cinemateca Catarinense / Fundação Catarinense de Cultura. Do início das pesquisas à edição final, dedicamos três anos ao projeto, que envolveu uma equipe de vinte pessoas.

NR - Em uma passagem um sujeito diz: "Eu não gostaria de viver como um porco, mas como um suíno seria interessantíssimo." O que ele quis dizer com isso?
Aquele suinocultor quis dizer, imagino, que a vida dos porcos na indústria da alimentação é melhor que a de muitos humanos. A gente não precisa concordar com ele, mas achei a declaração interessantíssima.

NR - Que mais te marcou no trabalho; sofrimento do bicho, ignorância dos homens ou ganância da indústria?
Lidar com a vida e a morte é marcante, seja de gente ou de animal comestível. Mas evitamos uma abordagem reducionista ou demonizadora. A questão da suinocultura industrial é complexa: envolve tradições culturais, relações econômicas e sociais, hábitos alimentares, demandas do mercado consumidor... A tentação de buscar respostas fáceis é grande, mas levaria ao engano. Muitas vezes me peguei pensando sobre a cadeia de responsabilidades que cria condições para a existência dessa indústria. Quando você risca um fósforo, por exemplo, está queimando, sem saber, uma fração do porco no aglutinante da cabeça do palito.

NR - Como foram as entrevistas, o plano de trabalho do documentário e qual o objetivo de colocar um "porco" narrando sua saga?
Começamos com uma ampla pesquisa sobre a convivência de milhares de anos entre humanos e porcos, passando por aspectos econômicos, ambientais, filosóficos, científicos... Então fizemos um roteiro aberto, em paralelo com as pesquisas de campo e com as filmagens. Por que uma abordagem "suinocêntrica"? A coisificação do porco é fio condutor do documentário. A ideia então foi favorecer o "diálogo com o outro", contribuir para que o espectador reflita sobre o que a humanidade tem em comum com a porcandade. Inevitável pensar sobre o preço que se paga para ter carne à mesa.

NR - Sofreu algum tipo de resistência ou boicote para fazer esse trabalho de reportagem?
O apoio dos moradores do Oeste catarinense durante as filmagens foi fundamental. As pessoas se identificam com a história, em geral têm suinocultores na família e sabem do grave problema da poluição. Houve algumas opiniões contrárias. Um espectador se mostrou preocupado com o possível efeito sobre os adolescentes, que poderiam deixar de comer carne. Acho que isso é superestimar a capacidade do filme de influenciar os hábitos das pessoas. Espírito de Porco não é um panfleto vegetariano, tampouco carnívoro. Apontamos alternativas, mas também deixamos muitas questões para cada um responder por si mesmo. Quanto à grande indústria da carne, não pedimos nem recebemos patrocínio deles. [Na foto: Renato Turnes (esq), ator que fez a voz do porco e os dois diretores, Dauro (centro) e o Chico Faganello]

NR - Depois desse documentário, o que dizer da suinocultura e da indústria que a mantêm?
Não sou especialista, mas pelo que pude observar, o modelo de suinocultura industrial de produção em escala, adotado a partir da década de 1970 no Oeste catarinense, me parece insustentável. É porco demais concentrado num território muito restrito. O dano às águas, ao solo e ao ar nunca foi contabilizado pelas empresas no preço final do produto. É urgente a necessidade de repensar a atividade - de pôr fim ao desastre ambiental e de melhorar as condições de vida dos animais. O filme retrata um momento de uma atividade que está em rápida transformação. Vai ser interessante revê-lo daqui a dez anos e, espero, constatar como as coisas evoluíram.

NR - Lançado em 2009, qual tem sido a percepção das pessoas que têm assistido?
Muito boa. Alguns acharam que devíamos ter sido mais contundentes. Mas esse seria o filmes deles, não o nosso. Optamos por uma narrativa que pudesse interessar diferentes perfis de público. Não é, evidentemente, um filme de entretenimento, mas se você se preocupa com o que põe na boca e com sua relação com outros seres vivos, Espírito de Porco tem algo a lhe dizer.

NR - O documentário foi selecionado para uma premiação em Cuba? Ganhou outros prêmios? A critica elogiou ou fingiu que não viu?
O Porco foi selecionado para participar da 11a. edição do Festival Internacional de Documentários "Santiago Álvarez in Memoriam", de 8 a 13 de março em Santiago de Cuba. Este ano o Brasil é o país convidado. Em agosto de 2009, nosso doc. foi eleito Melhor Filme pelo júri popular da 1ª Mostra Internacional de Cinema pelos Direitos dos Animais, em Curitiba. E em outubro, ganhou um prêmio especial do Júri Internacional no Cine'Eco - Festival Internacional de Cinema Ambiental de Seia, Portugal - uma mostra competitiva com participantes de 30 países. Também exibimos em festivais em Goiás, Fernando de Noronha, Chapecó, Porto Velho e Buenos Aires. Quanto às críticas, até agora foram poucas e boas. Aguardamos a sua.

NR - O que mais dá pra dizer que não está no documentário?
Quem quiser contar mais histórias sobre a indústria dos porcos tem um campo vasto para fuçar. O bem-estar animal e o confinamento em pequenos espaços, por exemplo. Há informações científicas muito interessantes sobre o comportamento do porco em diferentes ambientes. A questão da saúde pública é outro assunto importantíssimo e pouco estudado. Eu adoraria que esse documentário inspirasse outros.

NR - Como a gente assiste? Onde a gente encontra?
Estamos distribuindo o DVD pelo site http://www.faganello.com/loja.php (R$ 15). E, na medida do possível, fazendo exibições em escolas e universidades.

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