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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 18 de maio de 2010

A esposa de Borges e a pequena Buenos Aires

Buenos Aires é algo como São Paulo com alguns milhões de habitantes a menos. OK, uma constatação um tanto quanto óbvia e extremamente reducionista em relação às inúmeras diferenças. Mas o que importa é dizer que esses muitos milhões a menos criam um “esvaziamento demográfico” que, além de melhorias à qualidade de vida, gera situações que, para quem passou os últimos anos na capital paulista, parecem passadas em pequenos povoados deste mundo.
Você está almoçando e, de repente, passa pela porta o cineasta Pablo Trapero (Família Rodante e Leonera). Está tomando o chá da tarde e se depara com Bielsa, não El Loco Bielsa, mas seu irmão, Rafael, ex-ministro de Relações Exteriores.
Quando resolve ir ao Museu Jorge Luis Borges, vê na porta Gabriela Michetti, espécie de ministra-chefe do governo da cidade de Buenos Aires. Como não fosse suficiente, na sequência sai Maurício Macri, o chefe em si, com sua “cara de nada”.
O mais interessante nessas últimas andanças, no entanto, ocorreu dois minutos depois. Quando entro no museu, após superar o borbulho da saída macrista, uma senhora de irretocável elegância, cabelos meio brancos e meio pretos – não são grisalhos, não nos confundamos, passa a explicar-me a visitação com uma incrível quantidade de detalhes.
Alguém a chama pelo nome – Maria – e, por um segundo, passa pela cabeça que pode ser a esposa de Borges. Mas não, não poderia ser. Eu, leigo em Borges, tudo o que sabia sobre sua esposa é que era uma pessoa muito mais jovem que ele. Mas seria, achava eu, impossível que fosse tão mais jovem a ponto de seguir ativa vinte anos depois da morte do escritor, com cara de senhora recém-ingressada nas artes da 3ª idade. E mesmo que se mantivesse desta maneira, não ficaria à porta do museu recebendo as pessoas.
Eis que alguém lhe chama e entrega um envelope: Maria Kodama. Sim, é ela. Nisso já se haviam passado muitos minutos de conversa com a esposa de Borges sem sabê-lo. Me senti um dos maiores idiotas da face da Terra. Estava ali, na minha frente, e não sabia. Nos minutos que se seguiram, duas pessoas se somaram à conversa e Maria passou a nos apresentar o museu – que, caso alguém se interesse, fica na Calle Anchorena, Barrio Norte, paralela à Avenida Puerreydon.
Contou que abriu tudo na raça, com dinheiro que Borges ganhou em um prêmio. A casa abriga alguns escritos, muitas lembranças, milhares de livros. Em cada um deles, o escritor fazia observações na contracapa. Em um deles, em letra miúda, Borges anotou contradições que encontrou ao longo do enredo. “Depois disso, nunca mais deixei anotações em livros. Você vê o quanto elas revelam da personalidade das pessoas”, afirma, quase tietante, admirada com a inteligência e a concentração de Borges.
Ainda há um apartamento abarrotado de coisas do autor, mas falta apoio para expandir o museu. No entanto, a melhor guia turística sobre Borges está segura que, no próximo ano, tudo vai sair do papel. Ela conta que a casa ao lado é aonde o escritor viveu quando era criança. Maria tentou comprar o imóvel mas, quando contou ao dono que ali havia vivido Borges, a transação se tornou impossível.

− Você venderia? - pergunta
− De jeito nenhum – respondo
− Pois bem. Eu entendo – afirma Maria.

E dá por encerrada a visita.

João Peres é jornalista e colunista deste Nota de Rodapé

Um comentário:

Ricardo disse...

Ano passado eu fui visitar a tal casa, onde Borges viveu sua infância. Andei como louco, quando chego lá, descubro que a casa é apenas um salão de cabeleireiro. Una peluqueria! Não havia museu, registro, nada. Quanta decepção... Me restou uma sorveteria bem próxima para afogar mágoa da indiferença portenha frente à Borges.

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