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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

De como Gabo transforma mentiras em verdades

reportagem especial

As muralhas que protegem a cidade. O calor inclemente. As sacadas (balcones) das típicas casas do centro antigo. É difícil dizer qual a lembrança mais marcante que tenho de Cartagena de Índias. No um mês que estive na “cidade mais bela do mundo”, como Gabriel Garcia Márquez a chama, caminhei por lugares e conheci pessoas que fazem parte da obra do escritor colombiano. De lá trouxe uma semente de amêndoa, árvore presente nos relatos de Gabo, e a história que a partir de agora conto em quatro partes, até sexta-feira, dia 25. 

(Parte 1)

Dizem que uma mulher de vermelho 

anda pelos corredores

Um senhor de estatura mediana, óculos exageradamente grandes, pele morena e cabelos e bigodes grisalhos, caminha pelo pátio do convento de Santa Clara, em Cartagena de Índias, no Caribe colombiano. Misturado aos engenheiros, arquitetos e operários que trabalham na restauração do prédio, o homem vestido de branco e com um chapéu panamá enterrado na cabeça transita pelo mosteiro em busca de inspiração para sua nova novela. Na visita a uma tumba, o escritor, um colombiano conhecido mundialmente como Gabo, se recorda de uma visita que fez ao convento, quarenta anos antes, por conta de uma reportagem. Lembrança tão viva como se tivesse voltado ao meio dia daquele outubro de 1949 e vivesse aquilo pela primeira vez.
Gabriel Garcia Márquez venceu com dificuldade as poucas quadras que separavam a redação do “El Universal” do convento de Santa Clara. Buscou refúgio na sombra das varandas coloridas do centro da histórica cidade, mas chegou ao mosteiro empapado de suor e descrente de que a tarefa de acompanhar a desocupação das tumbas poderia render muito mais do que alguns centímetros no jornal do dia seguinte. O prédio do século 17 estava prestes a mudar de função: sairiam as freiras e entrariam os hóspedes de um hotel de luxo - motivo da retirada dos restos mortais. Nos fundos da capela, o processo da desocupação das tumbas onde, há séculos, repousavam religiosos e nobres da cidade, já estava em marcha. De um buraco no chão, imersos em uma nuvem de poeira, três operários, em um ritual silencioso e coordenado, retiravam os ossos, faziam com eles pequenos montes e os identificavam. Quando da abertura da terceira cripta, que trazia escrito o nome sem sobrenome de Sierva Maria de Todos los Ángeles, o repórter se deu conta de que aquele 26 de outubro de 1949 ficaria marcado para sempre em sua vida. Quarenta e cinco anos depois, Gabo dedicaria o prólogo de seu livro “Do Amor e de Outros Demônios” a contar essa história.
Na terceira urna, ao lado do evangelho, ali estava a notícia. A lápide se espedaçou com o primeiro golpe de picareta, e uma cabeleira viva, de uma cor de cobre intenso, se derramou para fora da cripta [...] Estendida no chão, a cabeleira esplendida media vinte e dois metros e onze centímetros.
A novela é inspirada na lenda, contada por sua avó, de uma marquesa, dona de uma cabeleira ruiva, tão grande "que se arrastava como véu de noiva", que após morrer de raiva aos 12 anos de idade passou a ser venerada no Caribe por seus milagres. "A ideia de que essa tumba pudesse ser a sua, foi minha notícia daquele dia e a origem deste livro."

Uma catacumba é o atrativo
O antigo convento de Santa Clara é hoje um hotel cinco estrelas, o mais luxuoso da cidade. Em 1987, a rede Sofitel comprou o prédio com a condição de restaurá-lo e preservar suas características. A capela, os quartos das freiras clarissas (transformados em habitações para os hóspedes) e as criptas funerárias,  foi recuperado em um processo que durou quase uma década. E são justamente as catacumbas do prédio, em especial uma delas, o maior atrativo do lugar. No centro de um bar estilo “lounge”, entre um sofá e outro, escondida pela pouca luz do ambiente, há uma escada. Três metros abaixo do nível do chão, em uma salinha pequena, sufocante, e decorada com um candelabro, está a tumba aberta e vazia de Sierva Maria de Todos los Ángeles.
“Não gosto muito de ficar aqui. Não sei, me dá um pouco de medo”, cochicha Yanelis Sepúlveda enquanto desce os seis degraus que levam à cripta. A mulata de 28 anos, bela e elegante, é consierge do hotel Santa Clara desde 2002. Está acostumada a mostrar a "hóspedes especiais" (leia-se autoridades e afins) o amplo jardim do antigo convento onde as clarissas cultivavam rosas, os túneis que ligavam clandestinamente as freiras ao mundo exterior e as antigas habitações do mosteiro.
Com um sorriso no rosto, apresenta aos visitantes a capela barroca, o antigo refeitório (hoje um luxuoso restaurante) e lhes pousa Clara, um simpático tucano, nos braços para fotos. Mas se não for solicitado, Yanelis desvia das lápides e das celas onde as freiras de mau-comportamento (como Sierva Maria de Todos los Ángeles no livro de García Márquez) eram enclausuradas. Para ela, o lugar é assombrado.
“Dizem que há uma mulher, vestida de vermelho, que costuma andar pelos corredores. Eu nunca vi. Mas também nunca ando sozinha aqui de noite. Nunca vi nada, mas já escutei uma gargalhada muito alta vinda de um quarto que estava desocupado. Também já senti uma respiração no meu pescoço quando eu entrava na capela”, mostra o braço com os pêlos levantados.
Leitora atenta de Garcia Márquez, Yanelis consegue identificar no convento os cenários descritos pelo escritor na novela, mas traz consigo uma dúvida: “Gostaria de perguntar a ele, saber o que é sua criação e o que é verdade nessa história toda. Se ele realmente entrou na cripta, se a Sierva Maria estava lá. O que ele viu, de verdade, quando entrou lá”.
A pergunta poderia ter sido feita pessoalmente ao escritor em duas oportunidades, mas faltou coragem à mulata. “Em uma delas, era para um encontro muito confidencial. Estava cheio de seguranças, ele ia se encontrar com alguém para mediar um processo de paz. Alguma coisa a ver com a ONU. Não me atrevi. Da outra, era uma festa. Eu vi aquele velhinho tão divino e fiquei com vergonha de atrapalhar a festa dele”, lamenta.
O hotel, cuja hospedagem mais econômica custa 350 dólares, permanece algumas horas do dia aberto à visitação. Diariamente, curiosos acudem à sala das criptas. Em um livro de presença aberto sobre à lápide os amantes da prosa de García Márquez deixam suas mensagens; em geral, registros de passagem como este: “No dia 11 de agosto de 2009, Vinicius e Carolina estiveram em Cartagena e visitaram a tumba de Sierva Maria de Todos los Ángeles.” Há quinze anos, a história dos metros de cabelos encanta e comove leitores do mundo todo.

Ricardo Viel é jornalista e colunista do Nota de Rodapé. Amanhã, quarta-feira, a parte 2 da reportagem especial "É preciso pinçar o que ele escreve". 

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