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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 19 de junho de 2010

E agora, José?

Para José Saramago, o poema José, de Carlos Drummond de Andrade, era como um mantra. O escritor contou que o repetia cada vez que a vida lhe trazia uma dúvida. Saramago morreu ontem (dia 18 de junho), em sua casa, em Lanzarote, na Espanha, aos 87 anos. Feito o anúncio, surgiu na internet farto material sobre o escritor português – muita coisa já na gaveta, preparado em 2008 quando ele quase foi embora.
Eu, simples leitor (atento, é bem verdade) de Saramago, me atrevo a escrever sobre. Espero acrescentar algo.
Antes de ateu, pró-Cuba, comunista, expulso de Portugal, “inimigo” da Igreja e dono de uma escrita única, José Saramago foi um grande escritor e um grande homem.
Homem de origem simples, de família de camponeses, o escritor tinha o avô, que era analfabeto, como maior exemplo. Fez questão de falar disso quando recebeu o Nobel, em 1998. “O homem mais sábio que conheci não sabia ler nem escrever.” Jorénomi Melrinho, que se despediu da figueira que tinha no quintal quando, sabendo que ia morrer, foi levado ao hospital, jamais soube que o neto seria escritor e usaria muito do que com ele aprendeu para criar seus personagens. Figuras humildes e encantadoras, como a camareira Lídia em O Ano da Morte de Ricardo Reis:
Se não quiser perfilha o menino, não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu. Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade, distingua-se quem puder.
Ou o revisor Raimundo Silva, em a História do Cerco de Lisboa:
Raimundo Silva olhou e tornou a olhar o universo, murmurou sob a chuva, Meu Deus, que doce e suave tristeza, e que não nos falte nunca, nem mesmo nas horas de alegria.
Saramago também foi capaz de criar diálogos simples e profundos, como este entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis:
Sempre vivi só, Também eu, Mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia para alguém ou alguma coisa que está dentro de nós.
E o que dizer das reflexões de seus narradores, como em A Janguada de Pedra?
A barca de pedra está lá, alta e aguda como na primeira noite, Pedro Orce não estranha, cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedras, e as altas proas, ainda que sejam de ilusão.
Em uma época em que livros de auto-ajuda são best-sellers, ler Saramago serve como antídoto: nunca fechei um livro seu como respostas prontas; sempre, cheio de perguntas e inquietações.
Uma vez perdi um livro de Saramago no ônibus. Faltavam menos de 20 páginas para terminar. O ódio por minha burrice deu lugar à resignação quando pensei que a pessoa que o encontrasse poderia conhece-lo e tirar proveito da obra. Fui a uma livraria e, de pé, devorei as páginas que faltavam.
Que sua morte sirva para que seus livros sejam lidos ainda mais. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago desenvolve a tese de que, assim como demoramos nove meses para nascer, demoramos nove meses para morrer. Sua obra o tornará imortal.

Olhos precisos
Antes de tudo, esse português foi um homem capaz de ver o mundo como poucos. Por trás de lentes enormes para corrigir a miopia, estavam olhos precisos; de um homem sábio, dono de um senso de justiça e amor ao próximo que nada tinha que ver com religião, mas humanidade. Homem que nunca perdeu os ideais e a utopia de mudar o mundo, e que usava a literatura como arma. “Antes escrevia porque não queria morrer. Mas agora mudei. Hoje escrevo para compreender o que é um ser humano.” Acrescentaria: e para ajudar-nos a tentar compreender essa incógnita.
Em uma entrevista, pediram a Saramago um conselho aos jovens. O escritor demorou uns instantes e respondeu: “Não percam tempo, mas também não tenham pressa”.
Pressa foi o que o português não teve na vida. Escreveu seu primeiro livro aos 25 anos e descobriu, segundo ele mesmo, que nada tinha a dizer. Calou-se por mais 20 anos. Costumava dizer que tudo na sua vida aconteceu tarde: virar escritor, conhecer o grande amor da vida...
E a morte, veio na hora certa? Saramago morreu aos 87 anos, lúcido e produtivo. Há duas semanas disse a Pilar, sua mulher, que tinha vontade de escrever um novo livro. Foi aconselhado a esperar, porque tinha a saúde debilitada.
Saramago se foi. Azar dos que ficam, que agora se perguntam: e agora, José? A luz se apagou.
Pilar colocou sobre o corpo de Saramago, velado na biblioteca de sua casa, um lenço com os seguintes dizeres: estaremos extremamente conectados à bondade do mundo. A frase fora mandada por um leitor argentino.
Recomendo a leitura de dois excelentes textos sobre Saramago publicados por conta de sua morte. De Luiz Schwarcz, Saudade não tem remédio. E de Juan Cruz, La felicidad era uma isla para Saramago.

Ricardo Viel é jornalista e colunista do Nota de Rodapé

2 comentários:

Anônimo disse...

Eu sabia que pra você, seria como perder alguém muito próximo. Sei que você o amava, e por isso, eu o amava também.

Gabriel disse...

BRAVO!

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