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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

"É preciso pinçar o que ele escreve"

reportagem especial

(Parte 2)

 

A poucos metros do convento, um muro alto alaranjado esconde um sobrado de esquina, com um jardim amplo e bem cuidado. O morador do número 38-205 da rua Del Curato, que quase nunca está, é Gabriel Garcia Márquez. A construção da casa do escritor - que desde os anos 60 mora no México -, explica muito da história de Sierva Maria de Todos los Ángeles.
“Na época em que escreveu o livro, Gabito passou muitos meses em Cartagena, porque acompanhava as obras em sua casa. Seguramente a restauração do convento o influenciou a escrever a história”, conta Jaime García Márquez, um dos 14 irmãos do escritor e diretor da fundação criada em 1995 por Gabo para fomentar o jornalismo na América Latina, a FNPI.
Quanto à reportagem citada no início do livro, Jaime García faz uma observação enigmática: “É preciso pinçar o que ele escreve”.
A explicação para o comentário surge quando as peças do quebra-cabeça são aproximadas. Elas não se encaixam. O convento de Santa Clara foi o hospital local universitário de Cartagena até a metade dos anos 70. Abandonado e em ruínas, o prédio foi comprado pela cadeia de hotéis Sofitel em 1987. Gabriel Garcia Márquez pode até ter visitado o local em 1949, mas não acompanhou nenhuma remoção, pelo simples fato de que elas, se de fato existiram, aconteceram quarenta anos depois, na época da restauração.
Os textos de García Márquez em sua época de repórter em Cartagena e Barranquilla foram recompilados, mas não há nenhuma reportagem sobre o convento de Santa Clara. O jornalista colombiano Gustavo Arango, autor do livro “Un ramo de no me olvides: Gabriel García Márquez en El Universal” (inédito no Brasil), buscou e jamais encontrou a reportagem de Gabo no convento.
“O que ele fez no prólogo do livro foi sobrepor eventos. Detrás das imprecisões dos fatos por ele narrados, há verdades muito certeiras. Acredito que a mais importante é apontar essa época como muito importante em sua vida. Suas primeiras experiências como repórter e a influência de Clemente Manuel Zabala no seu início [o nome de Zabala, primeiro chefe e mentor de Gabo, é citado na introdução do livro]”, explica Arango. Segundo o pesquisador, tampouco é de toda verdadeira a afirmação de Gabo de que dia 26 de outubro de 1949 não foi um “dia de grandes notícias” em Cartagena.
“Me dediquei a procurar o que havia acontecido nesse dia, e de fato, na Assembléia Municipal, houve uma violenta briga entre os políticos. Aqueles dias foram intensos em matéria política”, acrescenta.
Arango também teoriza sobre a data citada pelo novelista no prólogo do livro. “Fiz várias conjecturas, talvez descabeladas. Gabo gosta muito do mês de outubro. Em 'Ninguém escreve ao coronel' (1961) ele fala de outubro, das chuvas de outubro. Em muitos outros livros aparecem 'outubros chuvosos'. O 'Outono do Patriarca' (1975) está cheio de outubros. Quanto à data exata, há um dado curioso: em alguns livros antigos fala-se que o momento em que Deus diz: 'faça-se a luz' foi em 26 de outubro. Aproximadamente às nove da manhã.”
Jaime García Márquez também lê o prólogo de "Do Amor e de Outros Demônios" como uma homenagem a Clemente Manuel Zabala. Uma forma que o escritor encontrou de "reconhecer a importância do chefe em seu começo de carreira como jornalista". Para ele, a chave para entender toda a obra do irmão está na autobiografia “Viver para Contar” (2002), mas precisamente na frase fundamental do livro: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la”. Para Jaime, a mensagem é endereçada aos amigos e familiares e tem como objetivo dizer-lhes: não busquem incoerências ou equívocos em minha biografia, essa foi minha vida porque assim são minhas lembranças. “Com essa frase ele nos venceu”, sorri, resignado, o irmão do Nobel de Literatura 1982.

- (leia a parte 1: Dizem que uma mulher de vermelho anda pelos corredores)


Mas o próprio irmão, que largou o trabalho como engenheiro para assumir a fundação criada por Gabo, certa vez o indagou sobre uma passagem do livro em que é citado. “Ele diz que eu dividia quarto com dois irmãos mais novos e passava noites pregando aos menores sobre filosofia e matemática. Eu nunca dormi no terceiro andar daquela casa, nunca dividi quarto com os irmãos que ele cita... Eu tinha três anos, como podia falar sobre matemática com alguém?”. A resposta foi simples e irrefutável: “Você não entende nada. Se você tivesse, naquela época, divido quarto com eles e fosse mais velho, com certeza passaria todo o tempo falando de filosofia e matemática”.

Ricardo Viel é jornalista e colunista do Nota de Rodapé. Amanhã, quinta-feira, a parte 3 da reportagem especial "Verdades do coração".

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