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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 29 de junho de 2010

O dossiê e o livro (Fábula brasileira contemporânea)

Um livro, quase acabado de escrever, e um dossiê, de páginas ainda em branco, conviviam numa mesma mesa de escritório. O livro recebia com carinho a revisão de suas páginas, enquanto o dossiê, invejoso, deixava-se ficar no fundo de uma gaveta, à espera que alguém rabiscasse nele qualquer coisa que valesse a pena ser lido. Iam assim convivendo em relativa harmonia.
Certo dia o livro foi batizado. Deram-lhe nome: “Os Porões da Privataria”. Ficou todo orgulhoso, não só com o nome escolhido, mas com o que ia aprendendo em cada folha escrita, sobretudo com a apresentação que faziam de seu caráter e conteúdo. Não havia se familiarizado ainda com os nomes que lhe imprimiam por frases e parágrafos. Aos poucos, contudo, foi formando um quadro sobre os personagens que abrigava. Por exemplo: “Quem recebeu e quem pagou propina. Quem enriqueceu na função pública. Quem usou o poder para jogar dinheiro público na ciranda da privataria. Quem obteve perdões escandalosos de bancos públicos. Quem assistiu os parentes movimentarem milhões em paraísos fiscais. Um livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr., que trabalhou nas mais importantes redações do país, tornando-se um especialista na investigação de crimes de lavagem do dinheiro, vai descrever os porões da privatização da era FHC. Seus personagens pensaram ou pilotaram o processo de venda das empresas estatais. Ou se aproveitaram do processo. Ribeiro Jr. promete mostrar, além disso, como ter parentes ou amigos no alto tucanato ajudou a construir fortunas. Entre as figuras de destaque da narrativa estão o ex-tesoureiro de campanhas de José Serra e Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Sérgio de Oliveira, o próprio Serra e três dos seus parentes: a filha Verônica Serra, o genro Alexandre Bourgeois e o primo Gregório Marin Preciado. Todos eles, afirma, têm o que explicar ao Brasil.
Lá de cima da mesa, o livro gritou para o compadre dossiê, que dormia em plena tarde de sexta-feira no fundo da gaveta de baixo, sempre à espera que escrevessem alguma coisa nele. O dossiê abriu os olhos, botou uma das folhas vazias para fora da gaveta e perguntou: “O que foi livro? Qual é a novidade?” O livro respondeu: “Escuta só o que está escrito aqui na minha apresentação aos leitores”... “Diga”, retrucou o dossiê já com a inveja a transbordar.
A voz do livro vibrou orgulhosa mais uma vez: “Ribeiro Jr. vai detalhar, por exemplo, as ligações perigosas de José Serra com seu clã. A começar por seu primo Gregório Marín Preciado, casado com a prima do ex-governador Vicência Talan Marín. Além de primos, os dois foram sócios. O “Espanhol”, como (Marin) é conhecido, precisa explicar onde obteve 3,2 milhões de dólares para depositar em contas de uma empresa vinculada a Ricardo Sérgio de Oliveira, homem-forte do Banco do Brasil durante as privatizações dos anos 1990. E continuará relatando como funcionam as empresas offshores semeadas em paraísos fiscais do Caribe pela filha – e sócia — do ex-governador, Verônica Serra e por seu genro, Alexandre Bourgeois. Como os dois tiram vantagem das suas operações, como seu dinheiro ingressa no Brasil…”
De repente, ouviram-se vozes no escritório. Os dois amigos quedaram-se imóveis, como é da natureza de livros e dossiês. E procuraram ouvir alguma coisa da conversa. Alguém dizia, “Rapaz, esse livro vai cair como uma bomba”. Outra voz replicou: “Quando essa turma souber que está tudo documentado, vai ser um Deus nos acuda!”. E uma terceira voz: “Precisamos encontrar um jeito de minimizar as repercussões... temos que fazer alguma coisa... detonar alguém...” Sem saber muito bem por que, o dossiê sentiu um arrepio percorrer suas folhas em branco. Vinte minutos depois tudo voltou à calma...

Dizem que isso é crime
O livro, seguro de que não havia ninguém na sala, gritou para o dossiê: “Olha só isso aqui, cara, é incrível. Ouve só: 'Percorrendo os caminhos e descaminhos dos milhões extraídos do país para passear nos paraísos fiscais, Ribeiro Jr. constatou a prodigalidade com que o círculo mais íntimo dos cardeais tucanos abre empresas nestes edens financeiros sob as palmeiras e o sol do Caribe. Foi assim com Verônica Serra. Sócia do pai na ACP Análise da Conjuntura, firma que funcionava em São Paulo em imóvel de Gregório Preciado, Verônica começou instalando, na Flórida, a empresa Decidir.com.br,  em sociedade com Verônica Dantas, irmã e sócia  do banqueiro Daniel Dantas, que arrematou várias empresas nos leilões de privatização realizados na era FHC.'"
“Ouviu bem isso, dossiê? Heim? Outros livros, colegas meus, dizem que isso é crime, isto é, vendem o patrimônio público por uma merreca e ainda botam dinheiro no próprio bolso. No andar de baixo da mesa, dossiê ouvia tudo aquilo e pensava se não podia dar uma colaboração para a turma da privataria, só para contrariar.
Indiferente ao que pensava o colega, o livro continuou: “Ribeiro Jr. promete outras revelações. Uma delas diz respeito a um dos maiores empresários brasileiros, suspeito de pagar propina durante o leilão das estatais, o que sempre desmentiu. Agora, porém, existe evidência, também obtida na conta Beacon Hill, do pagamento da 410 mil dólares por parte da empresa offshore Infinity Trading, pertencente ao empresário, à Franton Interprises, ligada a Ricardo Sérgio.
“A coisa é séria, dossiê, não sei não... É muita informação comprovada por investigações sérias... Sabe o que mais, dossiê? Aqui do meu lado, tem uma carta dizendo que eu vou ser clonado em milhares de outros livros e espalhados pelo Brasil e pelo mundo... Fico feliz, pois o meu destino é informar e dar conhecimento às pessoas sobre muita coisa que se tenta esconder, escamotear... Mas a verdade sempre aparece, você não concorda?
O livro não ouviu qualquer resposta. Insistiu: “Dossiê, você não diz nada? Perdeu a fala? Aposto que já está aí pensando besteira”. Chateado, o livro gritou numa última tentativa de diálogo: “Dossiêêêê... Aparece, cara, mostra que você existe e pensa... como aquele filósofo francês...”
Silêncio.
E aí, caro leitor, você tem alguma notícia por onde anda o dossiê?

Izaías Almada é escritor e dramaturgo, colunista do Nota de Rodapé

Um comentário:

Juliane Oliveira disse...

Comecei a ler isso e não parei até terminar.
Muito bom!!

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