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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Verdades do coração

reportagem especial

(Parte 3)

A anedota contada pelo irmão Jaime faz crer que de certa forma nem o próprio escritor consegue delimitar exatamente onde termina a realidade e onde começa sua criação. “Não há em minhas novelas uma linha que não esteja baseada na realidade”, costuma repetir Gabo. “Acho que ele aplicou em seu trabalho como escritor um pouco da ideia de um de seus mestres, William Faulkner, que fala sobre as verdades do coração. A história pode não ser completamente fiel aos fatos, mas, mesmo quando se inventam detalhes, há um respeito profundo pelas verdades do coração”, analisa Gustavo Arango.
A fronteira nebulosa entre o real e o fantástico existente na obra do Nobel colombiano às vezes chega ao cúmulo de ser o limite entre a história pré e pós-García Márquez. Em alguns momentos, mais do que moldar-la, o escritor consegue, alterar a história. O chamado “massacre dos bananeiros” - quando os funcionários da United Fruit Company resolveram protestar pelas péssimas condições de trabalho e foram violentamente reprimidos pelas forças armadas colombianas, em 1928 é exemplar. Revisto após a publicação de “Cem Anos de Solidão (1967)”, o episódio tem hoje uma importância histórica muito maior do que há algumas décadas. Inclusive o número de mortos na matança que costuma ser o mencionado – os 3.000 que Gabo cita no livro é muito maior do que o estimado por historiadores. Ou seja, depois de 1967 o que foi uma violenta repressão virou um massacre com milhares de mortos.
Jaime Garcia conta que nos anos sessenta recebeu uma bonita carta do irmão que falava do futuro deles e do país e terminando com uma incumbência: levantar dados sobre o massacre, em especial o número de mortos. Depois de meses de pesquisa, mandou a resposta ao irmão: comprovadas, haviam oito mortes 2.992 menos do que as citadas pelo escritor em sua obra.
A história de Sierva Maria de Todos los Ángeles é outro exemplo dessa capacidade de Gabo de transformar a realidade. A cripta é visitada diariamente, e a reportagem que nunca existiu não raramente é citada como uma das melhores do escritor, não só por seus leitores, mas no meio acadêmico.
“O que ele faz ao mencionar a reportagem que não existiu é usar um expediente para dar verossimilhança à obra, uma coisa comum entre os escritores. Todos sabiamos que não era verdade aquilo, mas hoje há peregrinação para visitar o túmulo”, diverte-se Eric Nepomuceno, escritor e amigo pessoal de Garcia Márquez.

- (leia a parte 1: Dizem que uma mulher de vermelho anda pelos corredores)
- (leia a parte 2: É preciso pinçar o que ele escreve)
 
Tradutor de alguns livros de Gabo, entre eles “Viver para Contar”, Nepomuceno minimiza a importância de se separar o real da criação na obra de García Márquez: “Quem conhece a América Latina sabe que tudo o que está na obra dele pode ou poderia ter acontecido”.
Em 1982, em seu discurso de recepção do Prêmio Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez fez questão de falar sobre o tal realismo fantástico. Segundo ele, a realidade desse universo latino-americano é tão rica, que é preciso pedir “muito pouco” à imaginação. "O desafio maior para nós [latino-americanos] tem sido a insuficiência de recursos convencionais para fazer críveis nossa vida. Este é, amigos, o nó da nossa solidão."

Ricardo Viel é jornalista e colunista do Nota de Rodapé. Amanhã, sexta-feira, a parte 4, final, da reportagem especial "Escritor recebeu pedido para mudar o final do livro". 

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