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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Os "indignados" sob o olhar desconfiado de Franco

Os "Indignados" espanhóis querem melhores condições de vida. E desde maio tomam as cidades do país em protesto. Nosso colunista, Ricardo Viel, esteve com eles em Salamanca e conta o que viu na praça principal da cidade.

Dezenas de objetos dos mais diversos tipos, entre eles uma TV, estão expostos no chão, sobre uma lona, mas é por um par de chuteiras um tanto quanto batidas que brilham os olhos já cansados de um senhor.

Ele pergunta ao garoto que cuida dos “produtos” o preço e não entende muito bem quando escuta que eles não estão à venda: “É um mercado de troca, se lhe interessa alguma coisa, traga algo que considere justo e troque pelo calçado”.

15-M: apartidários, desejam despertar a consciência do povo
O senhor retira da cabeça a boina e pergunta se estaria bem a troca. Deixa a Plaza Mayor feliz da vida com as chuteiras debaixo do braço. “Imagino que vai dar de presente ao neto, porque já não deve mais jogar, deve ter mais de 70 anos”, se diverte David Ramos, de 24 anos, um dos acampados na praça central de Salamanca, noroeste da Espanha.

O estudante faz parte do movimento que tomou as ruas de Madri e depois do país todo no mês de maio. Os indignados, como ficaram conhecidos, se levantaram no dia 15 de maio de forma espontânea e pacífica. Depois da capital espanhola, o movimento se espalhou por todo o país e, por fim, ultrapassou as fronteiras.

O 15-M se diz apartidário e tem por objetivo despertar a consciência da população para os desmandos que a corrupção e o mau uso do dinheiro público vêm acarretando – a crise, para ser mais claro.

Os cartazes espalhados pela praça dão ideia do futuro que os indignados esperam. “Todos somos Islândia”, “O presente é de luta, o futuro nós o faremos”, “Nossos sonhos não cabem nas urnas”.

O mercado de troca faz parte das atividades que o 15-M vai desenvolver em Salamanca até domingo, quando levantam acampamento. Na quarta-feira, dia 21, o debate noturno foi sobre a reforma constitucional que colocará o pagamento da dívida como prioridade para a Espanha e impedirá “todas as administrações” de gastar mais do que arrecada.

Trata-se de uma imposição, que veio em forma de conselho, que França e Alemanha (os primos ricos da União Europeia) fizeram a todos os países do bloco. Os congressistas espanhóis foram os primeiros a aprovar a lei. Oposição e governo chegaram a um consenso de que a aprovação da reforma era o único modo de acalmar o mercado (parece que não funcionou muito).

Agora o 15-M tenta mobilizar a sociedade a forçar os políticos a aprovarem um referendo que colocaria nas mãos da população aprovar ou recusar a mudança, que deve representar um corte grande nos gastos sociais.

Os debates na praça seguem uma lógica simples, basta pedir a palavra e falar. As intervenções duram poucos minutos e há de tudo, inclusive quem agarra o microfone e se esquece do que pretendia dizer. A falta de trabalho (o desemprego chega a 20% da população e passa de 40% para os que tentam encontrar um primeiro trabalho), a corrupção e o temor de que o “milagre espanhol” se transforme em um pesadelo são os principais assuntos debatidos.

Mercado: um senhor entrega sua boina em troca de chuteiras
Oito cadeiras vagas, no meio da praça, representam os quatro deputados e quatro senadores da comunidade de Castilla y León que foram convidados a debater (por e-mail e carta, frisa o movimento), mas não compareceram.

Todas as intervenções terminam em aplauso, que varia de intensidade não só pelas palavras ditas, mas também, e principalmente, pela forma como é terminado o discurso.

Gonzalo Martin Pes, de 76 anos, precisa de poucos segundos para ser ovacionado. Sua fala é breve e teatral. “Um dia, um comediante conhecido da maioria de vocês, o genial Cantinflas, me disse: ´Gonzalo, venha, se não tiver comida para você, passaremos fome juntos´. Eu não sou tão fatalista, espero que ninguém passe fome, mas que tenha comida para todos”.

Em privado, Gonzalo me confessa que nunca conheceu Cantinflas e que a frase atribuída ao mexicano foi inventada. De qualquer maneira, o espetáculo na Plaza Mayor é bonito. Atraía muita gente, é respeitoso e democrático. A maioria dos que tomam o microfone são jovens que fazem parte do movimento, mas há de tudo, até os que se colocam contrários (e também são aplaudidos).

O debate termina sem uma conclusão, sem que se tirem propostas concretas. Esse é uma das críticas que se faz ao movimento. É fato, ninguém sabe ao certo até onde (e para onde) o 15-M irá.

“Eu não sou adivinho, não sei onde isso vai parar, mas digo que já fizeram muito”, me diz Gonzalo. Miguel Espigado, de 30 anos, membro do 15-M e um dos mais participativos no debate, está de acordo: “Não sabemos onde vai parar, mas dia 15 de outubro há uma marcha mundial até Bruxelas, para pressionar os governantes da União Europeia. Conseguimos levar mais de 100 mil pessoas a Madri, estaremos em Bruxelas, isso era impensável há poucos meses”.

Os descrentes criticam e dizem que o movimento não chegará a nenhum lugar. Os românticos confiam que a indignação dessa gente pode, sim, fazer uma grande mudança. Mas só o jornal La Gaceta, porta-voz da prefeitura, conseguiu ver o acampamento como um espetáculo que enfeia a cidade.

Minto, há mais alguém na praça que está contrariado com tudo aquilo. É Francisco Franco, que ao lado de figuras como Cervantes e os reis da Espanha, tem sua cara em uma das medalhas colocadas nos arcos da Plaza Mayor. Salamanca foi uma das primeiras cidades a cair na Guerra Civil e foi uma espécie de centro do franquismo durante o conflito.

Diferentemente das demais figuras, a do “general” encontra-se apagada de tanta limpeza. É que vez ou outra alguém resolve por jogar tinta na cara do ditador. Com a presença dos acampados, o risco de receber uma pintura só aumenta. Franco está contrariado com os indignados.

Ricardo Viel, jornalista, colunista do Nota de Rodapé, atualmente em Salamanca, Espanha.

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