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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Juro que vivi

"Manga, carambola, pitanga, goiaba, sapoti, abiu." Minha mãe de tanto descrever as frutas que havia no quintal da casa de sua infância, na rua Barão de Mesquita, na carioca Tijuca, fez com que abiu, sapoti, goiabada, pitanga, carambola, manga fossem frutas da minha infância transcorrida em quintais sem árvores.

Meu pai de tanto descrever o impacto que a notícia do fim da Segunda Guerra teve em seu coração de quinze anos, fez com que eu sentisse o louco entusiasmo que arrepiou as cabeleiras dos vivos naquele maio de 1945. De tanto ler e escrever sobre o 8 de Março, quase me convenço que estive presente no Congresso de Mulheres, Copenhague / 1910, onde a comunista Clara Zetkin propôs a criação da data.

A memória dos outros é poderosa quando contada e recontada. Ela penetra, sem cerimônia e impetuosa, no hipocampo cerebral de quem ouve ou lê. Por isso sou capaz de sentir o gosto do abiu, a euforia do final da guerra e a então subversão de um bando de mulheres. Faz menos de um mês, visitando a Fortaleza de Santa Cruz em Niterói, voltei a essa experiência de transferência de memória.

O recruta Patresi, nosso guia na Fortaleza, descreveu com tamanho brilho a fuga do preso político Juarez Távora, que vi o tenentista descer o íngreme paredão em direção ao mar, amarrado em uma corda de cânhamo de 25 metros de comprimento. De uma forma mágica, a fuga daquele fim de tarde de 1930 voltou a acontecer na manhã de um domingo deste 2011.

Memórias mortas são as não contadas. Aquelas envoltas em segredos de Estado, entocadas em pastas top secret, ou as memórias trancafiadas em diários que seus donos e donas atiram ao fogo. Porque os que têm a boca grande ou aqueles, como a minha mãe, que reprisam e reprisam suas lembranças são mensageiros e guardiões da grande memória. Memórias que a gente já não sabe a quem pertence. São de quem viveu os fatos e de quem ouviu contar.

Sempre que subo as escadarias do Teatro Municipal de Sampa, revisito a Semana de Arte Moderna de 1922. Semana – de três dias – que poria o modernismo dos paulistas no mapa cultural do país. Batata: vejo Oswald de Andrade descendo de um Ford Bigode. Mario de Andrade saltando do bonde. Villa-Lobos esvoaçado sua partitura e a ousada e tímida Anita Malfatti na companhia de um homem amarelo.

Para os leitores que não me conhecem, esclareço que não sou tão antiga quanto o modernismo. Nasci em 1955, ano em que os brasileiros elegeram Juscelino Kubitschek. O cara dos 50 anos em 5. O presidente da República que peitou a construção de Brasília. Minha tia Marlene andou por lá, quando a cidade era um enorme campo de obras e sonhos.

Pois de tanto ela contar suas lembranças, toda vez que aterrisso no Distrito Federal vejo novamente os barracões, a terra vermelha, os candangos – homens e mulheres – que meteram os pés no barro e as mãos no concreto armado. Vejo os operários suspendendo os anjinhos no teto da Catedral. Os jardineiros plantando as primeiras sementes nos canteiros do Plano Piloto.

Mas voltando ao Modernismo e ao Municipal, o que mais me recordo é da abertura da Semana com o poema do recifense Manuel Bandeira falando de sapos – sapo tanoeiro, sapo-boi, sapo-pipa – para uma plateia entre incrédula e ruidosa. Essa plateia saíra dali contando e implantando, na cabeça dos que viriam a nascer, suas memórias.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

13 comentários:

Alba Lucy disse...

É tão bom viajar na sua máquina do tempo, que a brevidade, em que você é mestre, causaas vezes certa ansiedade, pois a gente quer mais.

Egnaldo Paulino disse...

Como é importante sempre relembrar os fatos marcantes de nossa vida. As memórias são importantes para construirmos não só o presente, como também o nosso futuro. Muito bom! Parabéns.

Marta Argolo disse...

adorei seu texto, eu sempre gosto de ver as fotos antigas e relembrar momentos importantes da minha vida. Muito bom!

Marisa Ferraz disse...

A única matéria que já fiquei de recuperação na minha vida foi História, no colégio. Tenho certeza que, tivesse eu uma professora/contadora de História como você, não teria ficado...

gloriaerre disse...

qué bueno!

Anônimo disse...

Que maravilhoso mosaico de memórias você pintou!

margareth arilha disse...

quando desci pela primeira vez na pequena cidade de St. Polten, vizinha à Viena, terra de minha querida oma, quase desmaio de susto ao ver o luminoso da C&A. Esperava encontrar por lá as mulheres de vestido longo, passeando calmamente nas promenades de lá, com seus logos casacos de frio, montadas em cavalos ou sendo levadas por eles.. data. 1992.
um beijo,
marga.

cecilia@o2filmes.com disse...

a lira dos 8 anos
a lira dos 20 anos
a lira
em todo tempo há lira
bendita Fernanda
bjs

Suely disse...

Delícia de leitura. Adorei. Compartilho no twitter e facebook. Bom final de semana!

Lígia disse...

Querida, é tão bom numa linda manhã, ler suas escritas, assim mato a saudade da escritora que tive o prazer de conhecer aos 15 anos de idade.

Beijos!

LICA NEAIME disse...

Minha avó tinha esta mesma mania bendita de repetir e repetir e repetir os fatos de sua vida,o tempo da II Guerra, quando usava fios saindo de roupas velhas para costuras as mais novas,a doação de ouro (anéis, colares e pulseiras) para o Governo, etc e tal, mas minha memória tirou nota zero num teste no Hospital das Clinicas, e infelizmente, o que minha avó cansou de me contar se perdeu nas brumas de Sampa poluida e de um AVC precoce.Mas tenho a mesma sensaçãode ter vivido coisas que nunca vi!

Carmen Lucia Luiz disse...

maravilhoso seu texto. semana passada, visitando o porto de cacheu (guiné-bissau), minha alma estreitou-se com os gritos dos "locais" da época sendo arrastados, amarrados em correntes, para dentro dos navios negreiros. quase pude ver a cor e sentir o cheiro de seu sangue gotejando pela areia branca da praia. recontar faz reviver quem viveu e faz ver quem nunca viu.

dyvaleska disse...

sempre uma delicia semanal que já virou vicio...adoro todos seus textos e hoje em especial os pés de abiu( que vim a conhecer aqui no Rio no quintal da nossa casa)com cara de ameixa amarela, com gosto de pêra e mais o privilegio de ter mangas, pitangas, goiabas, abacates e bananas.....

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