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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Sofisma

Liu Pang
Que toda linhagem requer um nó inicial, frouxo que seja, para segurar-lhe os trancos da costura, é coisa que não me atrevo a negar. Mas acho graça quando o povo se arvora a buscar em lonjuras da História fato acerca do qual se possa extrair (ou inventar) significação conveniente, com fins de embasar discurso de autoridade sobre determinado assunto. (Se nenhum filósofo aparecer para me corrigir, eis uma definição possível de “sofística”.)

Exemplo disso achei num mui respeitável manual de Jornalismo Empresarial, subtema nobre da Assessoria de Comunicação - campo que, por motivação profissional, passei recentemente a observar mais a fundo.

Pois refere o dito cujo que o surgimento de tal matiz de jornalismo remonta às “cartas circulares das cortes da dinastia Han (fundada por Liu Pang, na China, no ano de 202 a.C.)”. Sobre o assunto, no livro, dois parágrafos curtos, e é tudo.

E como até então fosse esse o fato mais antigo relacionado ao surgimento da Assessoria de Comunicação que havia encontrado em minhas leituras, vi-me ante classudo argumento de autoridade. Fácil, rápido, aparentemente lógico e dificilmente verificável, caberia perfeitamente na aula inaugural da Oficina de Assessoria de Comunicação que me concederam conduzir.

O negócio é que, por demasiado inverossímil, achei por bem não mencionar a referência ching-ling aos estudantes. Passaram dois meses, e a escolha mostrou-se acertada: nesta semana esbarrei, sem que nem mais esperasse, com a comprovação de que Assessoria de Comunicação, essa panaceia novecentista, não nasceu com o Jornalismo Empresarial, tampouco na China de Liu Pang.

***

Sofisma por sofisma, espiem só o meu: descobri - e posso provar - que o exórdio da Assessoria de Comunicação remonta a uma Antiguidade outra: a grega; que ocorre em ano mais antigo: 423 a.C.; registrada não por um imperador, senão por um dramaturgo: Aristófanes; e verifica-se, em vez de no controverso Jornalismo Empresarial chinês, num irrefutável case de Media Training helênico.

Pois a peça “As nuvens” do comediógrafo grego não nos deixará dúvidas de que, na Grécia Antiga, já grassava o trabalho de sofistas que, por qualquer saco de moedas pesadinho, encarregavam-se de instruir jovens na arte de certa Oratória.

O texto de Aristófanes narra a história de Estrepsíades, um velhote velhaco afundado em dívidas que resolve usar os últimos caraminguás que lhe restam para, em vez de acertar as contas com seus credores, pagar um curso da tal Oratória (ou “Lógica Imoral”) para seu filho, o jovem Feidipides.

Obriga o rapaz então a frequentar uma escola que por fim o transforma numa sorte de rábula mordaz, apto a sair-se de qualquer embaraço por meio de argumentações tortas, capazes de confundir o povo, os credores e os juristas e, por fim, de subverter até a própria lei. Não me deixa mentir este breve excerto da peça (no mais, rica de outros exemplos):

Estrepsíades
Aristófanes
Já aprendeu Feidipides mesmo a Retórica que ainda há pouco tempo foi para nós exposta?
Professor (pegando a bolsa de dinheiro)
Aprendeu bem.
Estrepsíades
Oh grande deusa da Trapaça!
Professor
Agora ele pode evitar qualquer ação judicial que queiras.
Estrepsíades
Realmente? Mesmo quando se trata de dinheiro emprestado diante de mil testemunhas?
Professor
Mesmo mil testemunhas. Quanto mais, mais divertido há de ser no fim.

***

Um parêntese: o professor em questão é - pasmem - Sócrates. Sim, o filósofo. Aquele mesmo, pregador da maiêutica, do “conhece-te a ti mesmo”. É interessante ver Sócrates representado a partir do ponto de vista hegemônico daquela época: um velhote pederasta, ganancioso, amoral e corruptor de mancebos; não somente mais um, mas o maior dos sofistas. Novamente invoco os filósofos, mas, pelo pouco que sei, parece-me tremenda injustiça.

***

Para terminar com a história: formado, Feidipides passa a instruir e ajudar o pai a livrar-se de todo tipo de rolo na praça. Os dois tornam-se mesmo imbatíveis graças à arte da Oratória - muito embora torta, fugaz, enviesada e cheia de vícios.

Castigo para tal vilania, entretanto, não tardaria a chegar para Estrepsíades.

Feidipides, um belo dia, recorda-se de que o pai cultivara o mau hábito de castigá-lo, quando criança, açoitando-lhe com surras severas. Aí, como bom personagem de comédia, ele raciocina: 1) se os pais podem bater em crianças; 2) e os pais, quando os filhos crescem, tornam-se velhos; 3) e a velhice, como diz o ditado, é um verdadeiro retorno à infância; 4) logo, meu pai agora é uma criança; 5) e, sendo criança, posso então dar-lhe (em retribuição) as mesmas surras que levei.

Resultado: tome-lhe porrada no safado do velho.

Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal toda primeira quarta-feira do mês corrente. Escreve de Salvador.

Um comentário:

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Parabéns pelo o blog, adorei... muito bom mesmo!

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