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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 14 de junho de 2012

misture para degustar

Fui formada no erudito versus popular. Sendo que o erudito - o clássico, o culto - era a aspiração. O popular era o primitivo, o tosco, o incompleto. Algo a ser observado com compaixão e nada além. Ao erudito, o sofisticado. Ao popular, o simplório.

Essa formação arraigada grudou nos meus primeiros trabalhos. Passei alguns anos tentando escrever propositalmente um romance muito complicado e formal. Tanto me esmerei que consegui fazê-lo praticamente ilegível. Ou legível para meia dúzia de iniciados no new barroco literário.

Eu fugia do quê? Das frases simples, da ordem direta, das palavras mais usadas, dos parágrafos curtos. Minha intenção era que o leitor se esforçasse tanto quanto eu tinha me esforçado. Pedisse socorro ao Aurélio iguais vezes eu havia pedido. É claro que dei com os burros n'água.

Ainda não havia entendido que o complicado é diferente do complexo, e que o sofisticado é na realidade o simples. Demorei muitíssimo para compreender o que hoje me parece líquido e certo: sem comunicação não há público. Sem leitores não há escritor.

Perdi um tempo irrecuperável desprezando os autores com muitos leitores, e cultuando os autores com poucos leitores. Por quê? Estava presa à ideologia cultural de que só uns poucos conhecem e valorizam a qualidade. Enquanto a massa nada sabe.

Passei um bom bocado em frente a uma porta que não se abria. Escrevia para a tradição literária e também desejava ter leitores. Não consegui uma coisa e nem outra. Leia-se: nem a acolhida de críticos admirados por mim, nem a comunicação com o leitorado. Um desastre!

Até que um dia os bois-bumbá Garantido e Caprichoso abriram meus olhos. Salvaram a minha pele. Explico. Fui contratada pela revista da TAM para viajar à ilha de Parintins, Amazonas. Meu trabalho, ao lado do fotógrafo Ed Viggiani, era narrar os bastidores da festa dos bois.

Visitando os galpões, tanto do Caprichoso quanto do Garantido, encontrei uma fábrica de criação. Costureiras, marceneiros, eletricistas, pintores, maquinistas, ferreiros, soldadores, desenhistas, figurinistas, e segue a lista.

Um exército de criadores caprichando para garantir brilho à ópera do boi-bumbá, realizada todos os anos no bumbódromo da ilha. Fábula que o púbico sabe decorado e salteado. Mas o que vale mesmo é a variação no contar. Dito de outra forma: renovar a tradição.

Compreendi o rigor e a liberdade usados pelos artistas do boi. Percebi o talento deles em misturar. Sem cerimônia, eles ligam os pontos entre erudito e popular. Se funcionar, qualquer referência entra. Pegam o que for preciso para seduzir o público. Seduzem.

No avião de volta a Sampa, conclui que não precisava jogar fora o que havia cultuado e amado nos anos de formação. Bastava acrescentar novos elementos, vindos de onde viessem. Tinha sim um inimigo a neutralizar: o preconceito que fura nossos olhos cegando o horizonte.

fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo. Escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

Em tempo: Morreu Ivan Lessa (1935-2012). Duas penas enlutadas. A grande pena dele da qual saíram textos deliciosos, e a minha pena por ela ter silenciado.

6 comentários:

anigram disse...

fe, vc sempre surpreende. beleza de reflexāo! bj

Anônimo disse...

Esse texto é assim que nem um chorinho. O maravilhoso encontro do culto com o pulsante. Beleza. Júnia

Vladimir Sacchetta disse...

Quem afina a sua lira chega à beleza com simplicidade. E consegue dar o recado com precisão. Às vezes isso demora e nem todos chegam lá.

Joaquin Serrano disse...

Esse seu primeiro romance ainda vai valer uma fortuna. Eu que li guardo aqui uma cópia enquardernada para lembrar a admiração que sinto por você. Bela síntese oriunda de uma igualmente bela tese-antítese.

Caio Pompeu disse...

Fiquei pensando que o mesmo ocorre com a música. Já ouvi muita gente falando que "rock que é música". Como se os outros estilos fossem inferiores ou desprovidos de qualidade. Já tentei entender isso: ouvi rock, ouvi outros estilos, fiz a comparação inúmeras vezes e minha conclusão foi sempre diferente do dogma que muitos roqueiros insistem em exaltar. Rock é música, assim como todos os outros estilos - inclusive, por exemplo, as canções infatis de ninar e as rimas que meus colegas e eu cantarolávamos para celebrar as descobertas da adolescência. Mas, sei lá. De repente, eu simplesmente sou da turma da mistura e pronto. Vai saber, né?

nair benedicto disse...

oi, Fe. A biblia de alguns fotógrafos dos anos setenta, em termos de jornalistas, foi o Gay Talese,um italo-americano que se tornou famoso, quando ao invés de entrevistar o Frank Sinatra, que
estava fazendo o maior "doce"...entrevistou os empregados próximos a ele: motorista, doméstica,garçon...Aliás, o próprio Gay esteve numa das Flips falando maravilhosamente sobre suas matérias.

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