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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Carrolândia

Alguns anos atrás, uma das marcas de Brasília era o trânsito intenso por volta do meio-dia e das duas da tarde, que era quando todos os funcionários públicos saíam e voltavam do almoço, sempre em casa. Das seis às sete da noite também as ruas ficavam cheias, e só. No resto do dia, a gente transitava calmamente pela cidade, e sempre encontrava vaga pra estacionar, com as exceções que eram bem conhecidas, como o Congresso Nacional e algumas áreas comerciais mais movimentadas.

Como em todas as cidades brasileiras, nos últimos anos o número de carros cresceu absurdamente aqui. Muitos deles enormes, uns brutamontes obesos, frequentemente dirigidos por egos idem. Já nos chegaram os engarrafamentos que duram horas, os carros estacionados nos lugares mais improváveis por absoluta falta de vagas misturada com cinismo, a imprevisibilidade do tempo de deslocamento e outras mazelas que pareciam impensáveis nas nossas famosas pistas amplas e espaço a perder de vista.

Recentemente, ao passar um sábado em São Paulo para um compromisso de trabalho, fiquei exasperada com o tempo que perdi para fazer minha reunião e almoçar com uma amiga. Mais precisamente, das oito da manhã às cinco e meia da tarde, gastando dois terços dentro do carro, tentando chegar aos lugares. Simplesmente insuportável.

E o pior é que não existem sinais de alívio, pois as pessoas compram cada vez mais carros e usam cada vez menos os meios coletivos, pois o serviço, especialmente em Brasília, é tão ruim que inviabiliza seu uso. Aqui, até o metrô consegue atrapalhar a vida dos usuários, em vez de ajudar. Uma mistura de políticas irresponsáveis e imediatistas e um estilo de vida inconsequente assumido por quase todos nós (inclusive eu), segundo o qual ignoraremos os limites do espaço físico enquanto for possível. Isto sem falar na contaminação do meio ambiente e nos danos físicos causados pelo sedentarismo.

É inevitável a pergunta da avó escandalizada: onde vamos parar? No meio da rua, cada um dentro do seu carro, com os vidros fechados e o ar condicionado ligado, sem podermos nos mover pra lado algum. Depois de algumas horas de espera, vamos perceber que a fila não vai andar mesmo, então o jeito será abandonar o carro e continuar a pé. E descobrir que parou de vez, não há mais pra onde ir com os carros, que terão tomado todo o espaço disponível.

O que vai acontecer, então? Não sei, mas talvez as ruas sejam desocupadas por guindastes coletores de carros, que serão amontoados em volta da cidade, enquanto estaremos todos atônitos, tentando pensar no que fazer, como continuar a viver.

Parece absurdo, né? Mas cada dia mais eu acho que estamos chegando lá, e não vai demorar muito.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

5 comentários:

Anônimo disse...

É oportuno acordar o gigante Brasil para uma realidade tão visível que,alíás, não parece querer ser vista por quem tem a obrigação de fazê-lo.Sua observação é cabível, bem escrita,como sempre e,quem sabe, poderá despertar alguma alma adormecida para realidade tão preocupante. Continue. Excelente.
Beijos da Mummy

Elezer Jr. disse...

Na minha mas recente visita ao Brasil, fiquei com a mesma impressão tanto em cidades grandes (como Brasília e São Paulo) como outras menores onde estive. Mas que eu acho que a questão do uso de transporte coletivo não está só ligada à qualidade do transporte oferecido.

Aqui na Suíça, onde o transporte público é cinco estrelas em toda parte, o problema de excesso de carros nas ruas também existe - penso que tanto porque esse transporte público de boa qualidade custa (muito) caro, como porque as pessoas gostam de estar montadas nos brutamontes obesos (uma praga aqui também) e "isoladas" da gentalha lá fora.

O maior problema, porém, é a *necessidade* de se deslocar - todos os dias, mesmo apenas para ir e voltar do trabalho. No mundo globalizado de hoje, eu posso me dar ao luxo de trabalhar a 35 km de casa, certo de que meu possante me vai levar e trazer sem problemas por estradas muito boas todos os dias. Como eu, outras milhares de pessoas (ou milhões, mundo afora) fazem a mesma coisa - sem se dar conta de como contribuímos para o enrosco geral do trânsito.

Vamos chegar a um limite? Com certeza absoluta, mais cedo do que se pensa. E quando este limite chegar, quem tiver uma empresa de guindastes coletores de carros vai se dar muito bem.

Parabéns, Junia, pela reflexão, mas eu não resisto a uma pergunta: você está secretamente montando uma empresa dessas? ;-))

Carlos Augusto Medeiros disse...

Olá Júnia!! Realmente o pior efeito colateral do desenvolvimento econômico (e nenhum desenvolvimento humano) é o trânsito: como passam as horas?!? Quanto tempo desperdiçado?!? Estou cada vez mais convencido que haverá um tempo em que desenvolvimento sustentável será realidade, do chique ao brega, com valores que obrigarão comportamentos outros que respeitem habitantes e planeta(s).

Anônimo disse...

Júnia,
Nesta situação, acho que sou uma agraciada! Meu marido e eu trabalhamos pertissíssimo de casa hoje em dia e vamos a pé para o trabalho; é maravilhoso! Mas já trabalhamos cada um num extremo deste DF e eu ia de ônibus; cheguei a ir de metrô nas fases de teste: este é o único sistema de metrô que conheço que passa por trás de terrenos rurais; via galinhas, vacas e plantações todos os dias; e que, quando entra em Brasília, liga nada a coisa nenhuma. Era uma confusão.
Brasília tem tudo para ter um sistema de transporte público irretocável; só falta a famosa vontade política para que isto aconteça.
Márcia Ester

Anônimo disse...

De fato, aqui em Brasília o clima permite usar bicicletas quase o ano todo - menos na chuvarada de janeiro/fevereiro. Seria maravilhoso poder circular por aí numa delas, mas antes que isto seja possível em larga escala, é preciso reeducar os motoristas, que em geral não admitem dividir o espaço com ciclistas. Quanto ao transporte público, bem, este é um tema profundamente vinculado aos terríveis vícios (leia-se bandidagem) que dominam a nossa vida política. Júnia

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