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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Seja feliz, demita-se

Eu nunca cheguei a conhecê-lo mas sempre o achei triste. A impressão vinha das vezes em que nos cruzamos pelos corredores da emissora. Era muito gordo e baixo e usava um rabo de cavalo que não dava conta de esconder o início da calvície. Caminhava com dificuldade, sempre fumando um Marlborão vermelho, exalando tédio e cansaço.

Só o vi sorrir uma vez. Na verdade foi no mesmo dia em que ouvi sua voz pela primeira vez. Estava estranhamente radiante. As mãos tremiam de empolgação, segurando um cigarro que não fazia questão de acender. O motivo? Acabara de ser demitido.

– Vou pra Bahia, deitar embaixo de um coqueiro e fumar um quilo de maconha – dizia rindo feito criança.

Eu olhava aquele pobre ser humano, que durante dez anos trabalhou sem vontade, acumulando banha e alcatrão, e secretamente o invejava. Na vida, há poucos prazeres comparáveis a abandonar um emprego.

Tive essa grata experiência algumas vezes e frequentemente sonho em repeti-la. A mais memorável aconteceu há uns quatro anos, na Folha de S.Paulo. Estava terminando um período de cinquenta dias cobrindo férias no caderno Cotidiano. Trabalhava muito, ganhava pouco, não tinha benefícios e sempre acabava com as tarefas mais ingratas.

Certa vez, durante o julgamento de Suzane Von Richthofen, o jornal havia conseguido uma pista de onde estava o irmão mais novo da loira homicida. Me mandaram com um carro de reportagem para a frente da casa, num bairro residencial, perto do aeroporto de Congonhas. A ordem era esperar para ver se o guri entrava ou saía, e tentar arrancar alguma declaração. Fiquei das sete da noite às três da manhã parado na rua escura, ao lado do motorista que ferrou num sono pesado.

Em outro julgamento, dos cúmplices do Champinha, passei vinte e cinco horas na rua, diante do fórum de Embu Guaçu. Havia outros repórteres do jornal que iam alternado turnos e não escrevi uma linha sequer.

Por tudo isso, estava feliz da vida que minha temporada de suplício chegava ao fim, quando o editor do caderno me chamou de lado. Hoje ele é Secretário de Redação do jornal e já à época ocupava um cargo importante.

Talvez por isso não tenha se dado ao trabalho de sentar pra conversar. Falou enquanto andava, apressado. O jornal estava com um novo projeto, explicou, e eu seria o encarregado. Não perguntou nada, apenas me comunicou, como se eu fosse uma mesa, ou uma impressora, que pudesse simplesmente ser mudada de lugar. Foi falando e caminhando por corredores desconhecidos da redação até chegarmos a uma sala de espera, onde nos sentamos e ele terminou de explicar.

A Folha passaria a publicar diariamente um texto de obituário. Queriam que eu escrevesse. Para isso, eu teria de gastar meus dias telefonando para famílias enlutadas, à cata de informações sobre seus defuntos.
O prazer de deixar um emprego, creio eu, é o mesmo de arrumar a mala para viajar a um país desconhecido, de levantar a saia daquela garota pela primeira vez, de cair na estrada sem rumo. É um prazer que está nas possibilidades.
Acontece que eu não só estava feliz por deixar a redação como tinha um projeto de um livro-reportagem aprovado pelo maior grupo editorial do país. Quando expliquei isso tudo, a cara dele congelou e caiu no chão. E nesse exato momento a secretária nos mandou entrar. Sem ação, ele obedeceu. Entramos os dois, na sala que pertencia a Suzana Singer, à época a todo-poderosa Secretária de Redação do jornal. Nós entramos, sentamos, e ele me apresentou, com o sorriso mais amarelo do mundo.

– Oi Suzana, esse é o Tomás. Como eu te falei, ele ia tocar o novo projeto, mas acabou de dizer que está deixando jornal.

Ah, quanto prazer!... Mas não só por ver o rosto do chefe se partindo. Pedir demissão é muito mais do que isso. Também não creio que tenha a ver com as maravilhas do ócio, que fatalmente se transforma em tédio. Meu ex-colega do rabo-de-cavalo já deve estar de saco cheio da maconha, da brisa do mar, dos coqueiros e daquele maldito pôr-do-sol deslumbrante, todo santo dia no mesmo horário.

O prazer de deixar um emprego, creio eu, é o mesmo de arrumar a mala para viajar a um país desconhecido, de levantar a saia daquela garota pela primeira vez, de cair na estrada sem rumo. É um prazer que está nas possibilidades. Na esperança de que amanhã ou na semana que vem poderemos estar num lugar melhor, realizando coisas mais interessantes, vivendo a intensidade dos comerciais de cartão de crédito.

Infelizmente, como todos os prazeres intensos, este também passa rápido. E no fim não nos deixa mais do que uma lembrança feliz misturada à vontade de experimentá-lo de novo o quanto antes.

Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu penso a mesma coisa, mas em relação ao suicídio. O suicídio é demitir-se da vida. A alegria que o você teve ao sair da sala da chefe, muitos têm quando apertam o gatilho ou pulam da ponte.

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