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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Que calor!

Que calor! Enquanto o centro comercial do bairro fervilha, como um vespeiro atiçado, aqui no meio da Vila Romana os cães estão esparramados pelos jardins, como se estivessem na natureza. As férias escolares trazem tranquilidade. A frota circulante diminui. As piruas, cheias de estudantes, não correm mais ladeira abaixo e, principalmente, não buzinam mais histericamente às seis horas da tarde em frente à casa da vizinha de parede, a Denise, que, apesar de ser jovem – a maior gata do pedaço –, já é mãe de um menino de cinco anos. Eu gosto desta época do ano.

As crianças, enjoadas de ficar em casa vendo TV e jogando videogame, vão timidamente ganhando a rua, como se avançassem por território inimigo. A princípio é assim. Não demora, já estão reunidos na calçada para admirar as primeiras pipas das férias, sob o olhar zeloso de algumas mães, que aproveitam a oportunidade para jogar conversa fora, pôr o papo em dia, como elas dizem, o que na prática pode significar muitas coisas, mas principalmente falar mal dos outros, atualizar o obituário, o cadastro dos doentes, desempregados, desenganados, loucos, e também dos novos endinheirados, que se mudaram para os novíssimos edifícios de nome francês. Queixam-se sobretudo do calor. É o assunto principal. Que calor! Não se encontra posição na cama. Os pés estão inchados que só vendo! Assim quem é que aguenta? Melhor dormir na sala, onde é mais fresquinho (mas, aqui entre nós, também pra tirar uma folga do marido, que ronca que nem motor de barco).

Enquanto as velhas conversam, a molecada já invadiu a rua transversal, longe do olhar materno, onde eles esticam as linhas entre os postes pra passar cerol. Estão de olho nas pipas que já subiram. É só o início da longa temporada das pipas. Primeiro, comprar as varetas de bambu, o papel de seda, a cola; depois, arranjar umas garrafas de vidro para fabricar o cerol – a arma usada nos duelos incríveis que se travam nos ares. “Chupa, trouxa!”, um moleque grita de uma rua da Ipojuca, enquanto no céu uma pipa vem descendo, boiando, desmaiada. “Pipa no alto não tem dono!”. E é uma correria para ver quem chega primeiro.

Além da garotada, muitas pessoas escolhem tirar folga nesta época. Os rapazes aproveitam o tempo quente para jogar uma água no carro, tarefa que costuma durar horas, às vezes uma tarde inteira, dedicada a esguichar, esfregar, encerar o xodozinho, um Gol 2001, quatro portas. Mas isso é pretexto pra ficar na rua, olhando o movimento, as meninas. Sim, as meninas também saem. Nesse calor! Mas não ficam à toa na calçada, como os rapazes. Geralmente são vistas ou saindo ou entrando em casa, indo ou chegando do shopping, do cinema. Exceção são as que levam o cachorro pra passear. Não tem ocasião melhor para se conhecer a vizinha gata. Minha estratégia é também levar meu cachorro pra passear; se os cães se entendem, é meio caminho andado.

Dia desses, na padaria, enquanto pedia 200g de petit-four estilo ferradura, percebi que o Roque, meu cachorro, se agitou na calçada por causa da aproximação de alguém conhecido. Vi uma criança brincando com ele. Era o filho da Denise, a vizinha gata. Entrou rapidamente na padaria e parou de pé ao meu lado. Chamou o filho com rispidez. Mesmo usando roupa de trabalho, sapatinho de salto, vestido sóbrio, comprido, sem decote, estava linda. Apesar da cara de enfado, de quem passou o dia num escritório ou firma qualquer, numa sala com janelas fechadas, luz fria, ar-condicionado, ela continuava atraente, olhos grandes, lábios vermelhos, bem firmes, peitos firmes (que só vendo!...), sobre os quais os meus olhos se deitaram ansiosos e ingênuos, como os do Roque quando vê uma fêmea passeando; e vai segurar! Só que no mundo dos humanos é preciso que se cumpram certos rituais. Nem toda menina é papo reto. No geral é necessário lançar mão de estratégias galanteadoras, às vezes certas mumunhas, as palavras devidamente encaixadas, no tempo certo, evitando ser invasivo, óbvio ou clichê, todo esse papo aranha que a gente conhece de velho.

Mas Denise não estava de folga. Seu filho, agarrado às suas pernas, como um macaquinho, pedia sorvete com insistência. A atendente lhe perguntou se queria mais alguma coisa, além dos pães. Tentando conciliar as chaves de casa, bolsa, filho, atendente, pães, e o sorvete, claro, senão o menino vai ter um treco!, ela se virou, depressa, e finalmente me reconheceu. “Calor, hein?”, ela disse, dirigindo-se ao caixa com rapidez. Só tive tempo de responder o óbvio: “Que calor!”, antes dela sumir com chaves, bolsa, pães, sorvete e filho porta afora.


Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto 

3 comentários:

Betty Boguchwal disse...

Levíssima, derrete como o calor! Matei as suadades de você e do calor!

Anônimo disse...

Muito bom!

Anônimo disse...

Muito bom Carlos, andava com saudades de ler você. Dá até pra sentir o calor.
beijos
bel

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