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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 22 de março de 2013

Duas chaves


por Júnia Puglia Ilustração de Fernando Vianna

Para que serve um livro? Tola pergunta! Tantas são as respostas... Fico com apenas uma: para nos conectar a sensibilidade, juntar lembranças e exercitar a reflexão. Há poucos dias, ao ler as memórias de uma célebre escritora, deparei-me com uma rápida passagem sobre o hábito judaico de levar consigo a chave de casa, para onde for. Em instantes, fiz duas conexões que ficaram martelando aqui dentro.

A primeira, de quando eu tinha uns vinte anos, já trabalhava num bom emprego – coisas dos começos de Brasília – mas não podia ter a chave de casa, privilégio restrito aos pais e ao irmão mais velho. Inconformada com a restrição, comprei a briga e ganhei, conquistando a bendita chave e o direito de entrar e sair quando bem entendesse. Pode parecer banal, mas esses embates familiares sobre as coisas do cotidiano tomavam proporções quase épicas, principalmente quando protagonizados por uma pentelha topetuda que achava que podia tudo, e que muito pouco lhe era permitido.

A outra: alguns anos atrás, hospedei-me com uma família palestina árabe, em Amã. Apesar da rápida estadia, trago uma viva memória da paisagem árida, do calor e da cantoria prévia às cinco orações do dia, que me chegava de distintas direções por potentes alto-falantes. Chamou-me a atenção, como em nenhum outro lugar onde já estive, a demarcação do espaço público como território masculino. E também o tamanho dos apartamentos, verdadeiros solares empilhados, com salões, saletas, vários quartos, cada cômodo abrigando facilmente um desses ovos de codorna que andam vendendo por aqui, “com varanda gourmet e área de lazer completa para sua família”.

Ali, fiz meu primeiro contato direto com personagens da diáspora palestina. Guardo no coração o relato que me fez a velha senhora da família, em seu parco inglês, sobre a casa onde moravam em Jerusalém até 1948, quando foram sumariamente expulsos para dar lugar aos judeus, que chegavam aos milhares da Europa. O destino foi a vizinha Jordânia.

Supondo que seria um exílio temporário, levaram consigo a chave da casa, que ela tirou de uma caixa e me mostrou, enquanto terminava a história. Porém, como outros milhares de palestinos desalojados, foram impedidos de voltar, vítimas de um milenar, trágico e interminável balaio-de-gatos racial-político-religioso, produto da arrogância, da estupidez e da intolerância que se perpetuam em várias situações similares mundo afora. Uma única vez puderam visitar sua antiga morada, agora habitada por israelenses, que, por sua vez, não tinham ideia do drama por trás daquela casa. Consternados com a insólita visita, moradores e visitantes terminaram chorando juntos por uma situação na qual eram simples peças de um quebra-cabeça perverso.

Ambas as chaves ganharam vida. Nas mãos da moça ávida por alçar seu próprio voo, o objeto tomou a forma de pequenas asas, que depois ganharam envergadura. Lá na Jordânia, naquela caixa de madeira entalhada, o tesouro preservado com tanto sentimento por uma família exilada trazia uma história proibida de morrer.


Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto

5 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom junia. Pertinente com a fala do Obama aos jovens esta semana.

Anônimo disse...

Uma tocante lição de vida. A primeira chave , sem dúvida, abriu-lhe as portas de um mundo maior,para onde voou com asas ágeis e sem medo.A segunda mostra a dor dessa guerra infinda que, ao que tudo indica, nunca se findará.Mas, na verdade, gostaria de poder contar-lhe algo que o espaço aqui não permite e que vou chamar A TERCEIRA CHAVE. Tocou-me profundamente e, então, aprendi o significado da CHAVE DE CASA.
Parabéns.
Beijos da Mummy Dircim

Pastora Leila Müzel dos Santos disse...

Júnia querida,

Viajo nas tuas escritas... A tua alma me comoveu e me comove. Sensibilidade à flor da pele! beijos pra ti e pra mummy Dircim duas sempre amadas

Shirley disse...

LIndo relato, amiga. E agora não vou nem dormir sem conhecer a história da terceira chave da Mummy Dircim. Como vou resolver isso, hein! :)
Eu sempre tive chave de casa, desde os 7 anos, quando meus pais saíam pra trabalhar e eu me movia para a casa da tia assim que acordava. Aos 9, reivindiquei ficar sozinha em casa e a chave foi motivo de cobiça e inveja de minhas amigas, a quem não foi permitido o mesmo até que entrassem na adolescência. Para mim, tinha o gosto da liberdade de poder ficar sozinha em casa, com todo o peso que isso também significava. Beijos,
Shirley

Anônimo disse...

Olha, quantas lembranças você me trouxe! Principalmente de uma topetuda que tenho que, aos nove anos, ensejou a liberdade até da irmã mais velha exigindo esse direito de ter a chave da casa! Depois de ler o seu texto me veio à mente outras chaves que conquistamos com a nossa vontade de liberdade. Beijão e obrigada por mais essa "pérola". Fernandófora
P.S. Ah, assim como a Shirley, fico no aguardo de você nos contar sobre a terceira chave da Dircim!!!

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