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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Adeus, Cecilia!


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Cecilia Lipszyc partiu, deixando atrás de si, muito mais que um rastro de luz, um cometa inteiro de alegria, liberdade, bom humor, generosidade e amor pela vida e pelos seres humanos. Amor traduzido numa vida inteira de dedicação à causa dos direitos das pessoas, tanto no ativismo incansável, como na academia e na política. Desde que nos tornamos amigas, entendi que o melhor remédio para a caretice e o atraso era uma boa dose de Cecilia na veia.

Vimo-nos pela última vez, há menos de um ano, no café Bidou, uma daquelas casas tradicionais de Buenos Aires, onde os garçons parecem eternos e a decoração reflete tempos melhores em décadas passadas. Quando chegamos, ela já estava acomodada à mesa, tendo junto de si o cilindro de oxigênio portátil e o fino tubo preso às narinas, de maneira que pudesse inalar enquanto tocava a vida, como se nada estivesse acontecendo, como se seus pulmões não estivessem comprometidos por uma enfermidade devastadora. Fazia muito frio, e ela vinha trabalhada na habitual elegância, com sua inconfundível cabeleira rosa-choque, mas que também podia ser laranja vivo. Durante a hora e meia seguinte, jogamos dentro uma conversa saborosa, pontuada de observações ferinas e muitas gargalhadas.

Dona morte a levou num dia e, por uma estranha ironia, pouco depois buscou também seu oposto, o tirano assassino, condenado a prisão perpétua pelos inomináveis crimes cometidos contra seu país e sua gente. Aquele, cujo corpo foi entregue intacto à família e será sepultado em lugar próprio, apesar dos milhares que fez desaparecer.

Ironia à parte, estas duas pessoas representam muito bem o que a humanidade pode produzir de mais sublime e mais execrável. Gente que honra a vida e faz por merecê-la, e gente que a usa para produzir medo, horror, sofrimento e morte.

Há uma linda canção argentina, “Honrar la vida”, composta por Eladia Blázquez, que fala exatamente desses dois opostos, e que transcrevo aqui:
¡No! Permanecer y transcurrir
no es perdurar, no es existir
Ni honrar la vida
Hay tantas maneras de no ser,
tanta conciencia sin saber
adormecida...
Merecer la vida no es callar y consentir,
tantas injusticias repetidas...
Es una virtud, es dignidad
Y es la actitud de identidad más definida
Eso de durar y transcurrir
no nos da derecho a presumir.
Porque no es lo mismo que vivir...
Honrar la vida
¡No! Permanecer y transcurrir
no siempre quiere sugerir
Honrar la vida
Hay tanta pequeña vanidad,
en nuestra tonta humanidad
enceguecida.
Merecer la vida es erguirse vertical,
más allá del mal, de las caídas...
Es igual que darle a la verdad,
y a nuestra propia libertad
La bienvenida
Eso de durar y transcurrir
no nos da derecho a presumir.
Porque no es lo mismo que vivir...
¡Honrar la vida!
E pode ser ouvida, na voz da inesquecível Mercedes Sosa, aqui:

 

Um beijo, Cecilia! Adeus.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

2 comentários:

Anônimo disse...

Cecília merece muito mais que homenagem. Conheci-a já sem forças, cansada pelo mal pulmonar que a fazia sofrer e ela insistia em que estava bem. Fez questão que a levasse aos lugares mais simples e comuns de Brasília. Queria,certamente, sentir o pulsar do coração do povo, coroando uma vida de dignidade e amor ao próximo. Foi-se. Deixou o exemplo sublime de quem sabe honrar a vida.
Mummy Dircim

Anônimo disse...

Linda homenagem! Quem me dera merecer algo assim! Beijos, Kesia

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