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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Mistura



por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

Os pedaços de frango bem limpos, livres da pele e da gordura aparente, são envoltos numa mistura de alho socado na hora, sal, pimenta do reino preta e vinagre. Sabe como é, gordura e pele estão condenadas ao fogo eterno, por amor às nossas coronárias. Cada grama descartado dá direito ao crédito de um milímetro adicional no copo de cerveja.

O franguinho anêmico e congelado do supermercado vai virar um arremedo de galinhada, ou “colegada”, como prefere uma amiga, convicta do seu lado galináceo. Refogado com temperos, receberá um generosa dose de arroz, a ser cozido em seu caldo. Em apresentações e combinações várias, trata-se de um prato muito popular nas muitas mesas latino-americanas que têm no grão branco asiático um vício.

Como muitas outras coisas básicas da vida, conheci a galinhada em Brasília, numa casa mineira, onde se juntava o grão-de-bico ao arroz, mas a versão mais difundida por aqui leva milho verde. Um toque de açafrão ao final do cozimento, e depois é só alegria.

Entretida no preparo, minha mente passeia pelas cozinhas de casa, das avós, tias e vizinhas. Em todas, a mistura era um tormento cotidiano. Para quem não tem intimidade com o paulistês, esclareço. Em mesa de paulista, tinha sempre os infalíveis arroz branco e feijão marrom, mais pelo menos três itens de mistura. Não podiam ser muito caros nem repetidos, o que impunha um exercício de criatividade interminável. Duas vezes por dia, porque nem pensar em servir sobras do almoço na janta. A quantidade e variedade eram ostentadas como sinais de fartura, sendo desnecessário estabelecer qualquer relação de harmonia ou complementariedade entre os pratos. Mistura minguada era coisa de mulher preguiçosa ou marido mão-de-vaca, senão fracassado. A frase “não sei o que vou fazer de mistura hoje” estava sempre presente nas conversas das comadres logo cedo, enquanto varriam a calçada.

A narrativa no tempo passado indica que estou desatualizada sobre o quanto a urbanização, a escassez de empregadas domésticas, a praga da “fast food” e os restaurantes por quilo alteraram a rotina dos lares interioranos. Ouço contar que o cardápio já mudou bastante, tendo o arroz e o feijão caído muito em importância, o que considero uma lástima. Será que o dilema da mistura se acabou junto com o aparecimento de um “quilo” em cada esquina? Nas minhas poucas incursões pelo interior, noto sua presença arrasadora por toda parte. Os “serve-serve”, na deliciosa pronúncia cabocla, vieram para ficar. E o que não falta neles é mistura.

A cabeça viaja mais um pouco e visita outra mistura: de gente. Exige talento, coração aberto, espírito desarmado. Vem da constatação de que somos todos feitos da mesma matéria, e de que as diferenças só nos enriquecem. Para alguns, acontece naturalmente; para outros, exige investimento e esforço. Cor da pele, etnia, fé, identidade e orientação sexual, convicção política, profissão, origem, educação podem ser ingredientes de uma grande receita de paz e harmonia, tudo junto e misturado. Gosto muito.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Atrasada mas cheguei.Uma nimi- volta pela imensidão do Goiás é a culpada. Não comi galinhada nem macarrão com salada de batata como nos tempos da casa de minha mãe (como é boa a casa da mãe !), mas em compensação , me fartei num lanche "a quilo".Essa moda também já pegou. Não é melhor nem pior. Apenas tudo muito diferente, sabor de atualidade.E o estômago que se cuide.
Mistura de gente?´Como enfiar no mesmo caldeirão
tantos pensamentos e atitudes diferentes ? Como dar cor e sabor a essa salada plural de pessoas?
O cérebro que se cuide e se exercite.
Beijos da Mummy.

Leila, estou de volta. Beijos

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