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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O pão, a pomba e as sandálias prateadas



por Tomás Chiaverini ilustração Victor Zalma*

Segunda-feira. Acordo com uma sensação estranha e intensa de que nada faz sentido. Levantar da cama, sobretudo, não faz sentido. São nove horas, um horário ridiculamente preguiçoso para qualquer cidadão de bem. Mesmo assim programo o celular para tocar trinta minutos mais tarde. Não chego a dormir de novo. Fico lá, debaixo das cobertas, imaginando a manhã fria e tentando entender o que, afinal, não faz sentido com tanta força.

Foi um bom fim de semana. Priscila veio ficar comigo, bebemos vinho sem moderação, saímos para jantar, assistimos a filmes velhos na TV. No domingo fizemos torta de maçã, com uma receita indicada pela Clau. Estava um dia muito frio, mas mesmo assim fomos a pé comprar os ingredientes. Quando saímos havia uma pomba parada bem ao lado da entrada do prédio, numa esquina do bairro das Perdizes. Estava muito quieta e não voou quando nos aproximamos. Provável que estivesse doente ou machucada.

Na volta do supermercado, dobramos a esquina conversando animados e um homem fez um gesto com a mão, pedindo que parássemos ou que nos aproximássemos devagar. Estava agachado ao lado da pomba, com uma caixa de papelão nas mãos. – Parece que ela está doente – disse.

Nós concordamos em silêncio e entramos. Fizemos a torta e um caldo verde. Quando ficou tudo pronto, saímos para comprar pãezinhos frescos. A pomba não estava mais lá, nem o homem. Apenas a caixa de papelão vazia. E um par de sandálias. Sandálias prateadas, de salto alto, colocadas juntinhas sobre a calçada, perto da parede externa do prédio. Não faz sentido nenhum. A pomba, o homem a sandália. Também essa crônica não faz sentido nenhum.

E agora, lá se vão mais de sete horas desde que acordei. Tomei café, revisei algumas páginas do próximo romance que não fica pronto nunca, fiz exercícios, tomei banho, almocei os restos do caldo verde com duas fatias grossas de pão integral. Cheguei tarde na redação e o dia está mal parado. Passei o olho pelos jornais, facebook, conversei com amigos pelo comunicador instantâneo, depois me ocupei em escrever este texto. O fato é que a coisa não melhorou. Muito pelo contrário.

Cada vez mais, nada faz sentido.

*Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na OrelhaIlustração de Victor Zalma

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