por Ana Mendes*
Chovia torrencialmente quando fui assistir o espetáculo O topo do Mundo em Porto Velho. Novembro é justamente o período de transição entre as estações amazônicas. São só duas: ou é inverno ou é verão. Como diria Walter, um biólogo que já virou mito na cidade “ou é quente ou danado de quente”. É mesmo. Mas de fato aquela chuva tinha algo de extraordinário e no palco um menino foi parido. Um moleque grande e preto rolou útero a fora gritando “eu matei! Eu tirei uma vida e me tornei meu próprio Deus... Por quanto tempo ainda serei um caiado, branco por fora e podre por dentro!?”
Sob o comando do diretor Marcelo Felice, uma equipe de vinte atores colocam em cartaz diversas narrativas simultâneas. Todas elas em torno de um destino comum: o cárcere. Eles são presidiários do regime fechado da penitenciária Urso Branco. No palco, revelam histórias que tem um vínculo profundo com as trajetórias pessoais de cada um. São tramas que contam mais do que um relato verídico dos acontecimentos que desencadearam em crimes, mas trazem processos psicológicos de dor, medo, vaidade, vergonha, vingança contra si e contra os outros.
O roteiro é resultado de processos terapêuticos que acontecem fora do palco. A complexa ferramenta elaborada por Marcelo e sua equipe envolve uma ampla busca espiritual. Massoterapia, meditação, banho de lama, temascal, ayhuasca e o eneagrama formam um conjunto de técnicas que bem aplicadas resultaram em uma iniciativa que dura quase duas décadas. “Este projeto é intitulado como teatro terapêutico, pois todo e qualquer movimento corporal, dos corpos emocionais, psíquicos e mentais, são experimentamos a partir da psicoterapia, fazendo com que esses indivíduos reflitam sobre a sua ação e reação. Todo o gesto, elaborado ou não, de movimentos autênticos ou de dança contemporânea, por exemplo, vem precedido da terapia.”, diz Marcelo.
Este é o segundo espetáculo montado por Felice com atores detentos. O primeiro, intitulado Bizzaros ficou quinze anos em cartaz e circulou por todo o país, sendo inclusive apresentado para membros da Organização das Nações Unidas (ONU) e autoridades da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em 2014 o projeto pretende incluir as mulheres que cumprem pena do Presídio Estadual Feminino de Porto Velho. Ao poder público local e nacional fica o recado: este é um projeto sem precedentes no país, sobrevivendo com garra e fé de quem acredita no potencial renovador do ser humano. É necessário mais atenção, muito mais.
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*Ana Mendes, gaúcha de nascimento, é fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Mantém a coluna Faço Foto.
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