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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Bordado


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

“O grande prazer do bordado é andá-lo sempre a fazer”, disse Maria Eduarda ao visitante que lhe elogiou a destreza, na série televisiva baseada no romance “Os Maias”, de Eça de Queiroz. Manusear interminavelmente as linhas e agulhas sobre intrincados desenhos em tecidos esticados por bastidores redondos era a principal ocupação das mulheres de sua classe, quando não estavam desmaiando de paixão pelos cantos. Como não tinham nada relevante a fazer, as mulheres e os homens da aristocracia passavam a vida gastando heranças e se desmilinguindo de amor. Este, pouco ou nada tinha a ver com o sacrossanto casamento. No quesito conjugal, todo mundo traía todo mundo, desde que mantidas as aparências e garantido o patrimônio da família.

No caso de Eduarda, a fortuna acumulada por seu avô, notório negreiro que enricara traficando escravos africanos para o Brasil, fora dilapidada por sua desmiolada mãe Maria Monforte, e ela agora dependia de que algum senhor ricaço lhe bancasse o ócio. Porque trabalhar mesmo, nem pensar, isso era coisa de negros e pobres. E a autonomia feminina não existia.

Um grande livro, situado na segunda metade do século 19. Desde então, as coisas mudaram muito, em especial para as mulheres.

Há poucos dias, Michelle Bachelet tomou posse como Presidente do Chile, pela segunda vez. A faixa presidencial foi-lhe entregue por Isabel Allende, presidente do Senado, filha de Salvador Allende. Entre os muitos chefes de estado que assistiram a cerimônia, Cristina Kirchner e Dilma Rousseff. Todas as quatro nascidas entre 1945 e 1953. Nada mau. Em cento e poucos anos, viver a bordar e suspirar deixou de ser o destino obrigatório das mulheres “bem nascidas”, em boa parte do mundo. Muitas, incluindo as pobres e as negras, que trabalham desde sempre, começaram a se desvencilhar do seu destino tácito por caminhos próprios e a se ver como indivíduos dotados de vontade e direitos. Nas décadas mais recentes, empreenderam uma ocupação territorial nunca vista antes: sacudiram a hegemonia masculina na vida pública e no poder. Estamos ainda muito longe de uma situação justa, mas já andamos um bom caminho.

Ver as três presidentas juntas – eu me recuso a discutir a flexão de gênero, considero-a uma licença poética –, e uma quarta mulher empossando Bachelet, foi de arrepiar. Sim, as quatro são brancas, sempre tiveram o suficiente para viver com dignidade, formaram-se em boas escolas, com acesso a informação, contatos e livros. Portanto, poderiam ter escolhido bordar e suspirar, em seus muitos sucedâneos mais modernos, como gastar seus dias malhando nas academias, torrando os cartões de crédito do marido da vez e postando inutilidades nas redes sociais. Preferiram o engajamento e a militância política, com tudo o que vem no pacote, para mal e para bem. Delas se poderá dizer tudo, menos que se esquivaram da tourada. Entre outras coisas, estão forjando o futuro de nossas meninas.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande Júnia e sua preciosa cabeça !!! Quem sabe chegou a vez de "a mão que embala o berço governa o mundo !!!!" Será melhor ? Pior ? Com algum amor , apontando para o alto ? Vale continuarmos otimistas .
Beijos da Mummy Dircim

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