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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Nós e eles


por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Fazia tempo que não me aparecia uma notícia dessas. Encontraram, na Malásia, um menino adotado por uma família de orangotangos. Pela foto divulgada, é lourinho, tem uns cinco anos e aparência saudável. Segundo as reportagens, ao cabo de um árduo trabalho de vários dias – durante os quais a família tentou bravamente evitar que ele fosse levado, mas acabou impedida de reagir, sob o efeito de tranquilizantes injetados por dardos – o garoto foi “resgatado”. Agora começa um processo, provavelmente complexo e demorado, de levantamento da identidade civil e da origem do menino. E para ele, desconfio, uma tristeza infinita, um destino de dor e desajuste irremediáveis.

Se havia outra solução, suspeito que sim. Qual seria ela, não tenho ideia. Mas que essa história me fez pensar, ah isso fez! A partir desses caso, encontrei outros relatos semelhantes na internet, com um traço comum. As crianças que passam por esta experiência nunca chegam a ser humanos “normais”. Partes do processo de aprendizado e aculturação ficam perdidas de forma definitiva, fazendo delas pessoas “incompletas”. Por que, então, ainda se toma a decisão, arbitrária e autoritária, de retirá-las abruptamente da vida selvagem?

Por mais explicações especializadas que se possam dar, a mim me parece que a principal motivação vem do nosso convencimento de que somos superiores aos outros animais e de que um ser humano não merece viver daquela forma. Mas se é a única vida que faz sentido para aquela pessoa, quem tem o direito de interferir? São questões complexas, longe de mim pretender dar respostas.

Aqui no meu canto, penso que, a partir do momento em que, lá nas cavernas, percebemos nossa capacidade de raciocínio e como ela poderia nos proteger contra predadores com muito mais eficácia que a força física, tomamos a decisão de nos distanciar dos outros ao máximo. Esta distância só fez crescer, com o passar dos milênios, ao ponto em que hoje os bichos próximos são aqueles que trouxemos junto, que foram por nós transformados. Os outros são todos “selvagens”.

Não tenho uma relação muito próxima com bichos, mas meus miolos estão mais amolecidos porque recentemente assisti os três episódios disponíveis da série “Cosmos”, em nova produção. Ciência traduzida para uma língua que todos entendemos. Fascinante, eletrizante como deveria ser o ensino científico nas escolas. No famoso calendário anual bolado por Carl Sagan como uma espécie de linha do tempo do universo conhecido, através do qual se faz uma comparação do tempo estimado de existência deste com um ano terrestre, é possível perceber a relevância do nosso planeta, da vida como a conhecemos e da história humana. Uma lasca de unha.

A origem comum a todas as espécies vivas, o parentesco íntimo entre todas as formas de vida, que tanto nos incomodam e temos feito de tudo para ignorar, aparecem ali claros como água mineral. Não, não podemos aceitar que um de nós se junte aos macacos e viva como um deles. É humilhante e nos faz lembrar de onde viemos. Na verdade, acho que ainda não entendemos nada, pois estamos nos minutos iniciais da nossa história.

Se conseguirmos sobreviver como espécie aos descalabros que temos provocado no planeta e em nós mesmos – e eu acredito que conseguiremos – talvez daqui a alguns séculos, ou mesmo milênios, tenhamos logrado perceber em larga escala nossas conexões profundas com todas as manifestações da vida e estabelecer formas de convivência mais inteligentes. Por enquanto, a imensa maioria de nós não percebe. E separamos drasticamente crianças de suas famílias orangotangas.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

2 comentários:

Anônimo disse...

Nota 10 - aliás, como sempre! Me fez lembrar o comentário que ouvi de uma jovem senhora durante uma palestra em que um padre tentava conversar com a platéia sobre o livro do Gênesis ter sido uma tentativa de explicar a origem da vida para o povo na época em que foi escrito, mostrando o que a força divina, criadora de vida, pode promover, e que sobre criação do ser humano deveríamos conversar com biólogos e cientistas. A moça, revoltada, levantou-se e perguntou: "o senhor está querendo dizer que eu tenho de falar para o meu filho que somos a evolução de macacos? Prefiro dizer que Deus nos criou do barro"... Daí, minha filha, podemos concluir que ainda haverá muitos séculos até entendermos que tudo é feito da mesma matéria e merece o mesmo respeito (se é que não vamos destruir tudo antes)! Beijão e bom fim de semana, FF

Anônimo disse...

Estou concentrada mesmo é na situação do menininho encontrado entre os orangotangos. Como ele foi parar lá ? Que sentimentos teve ao se sentir numa"sociedade" diferente daquela onde nasceu ? Há quanto tempo vive lá ? Como teria sido sua adaptação a um mundo diferente ? Onde estão seus pais humanos ? Alguém está procurando esse filho perdido ? Quanto a todas as demais considerações levantadas, corretamente,aliás, pela Júnia, deixo aos especialistas. Quem sabe, um dia," descobrindo a origem" dos humanos, conseguirão, também, descobrir o sexo dos anjos.
Parabéns, Júnia, pela clareza das colocações. Parabéns, Fernando, pela ilustração perfeita.
Beijos da Mummy Dircim

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