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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O que faz sentido?


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Cozinhar e depois comer, cozinhar mais, comer de novo, limpar a sujeira de cozinhar e comer, começar tudo de novo. Aconchegar os bebês bem apertadinhos, recebendo a incomparável energia da vida recém-estreada e ainda bem virgem dos perrengues de crescer. Olhar muito para os filhos, acompanhar o que dizem quando se movimentam, saem, entram, sobem e descem de manhã, à tarde e à noite. Café com leite todos os dias, arroz com feijão de segunda a sábado e macarrão no domingo. Chá de capim santo pra dor no peito.

Espelhar nos outros as misérias e delícias que compõem o mosaico do cotidiano nosso. Encantar-se com as pessoas, com os bichos gatos e cachorros e tartarugas e baleias, com coisas pequenas de todo dia e grandes de de vez em quando, ou o contrário, sabe-se lá. Sentir o quentinho da pele menos ou mais alheia, com vontade de sentir o quentinho da pele menos ou mais alheia, sabendo-a parte da sua própria pele. Lençóis em chamas. O alarido dos passarinhos comemorando a manhã de sol, depois da chuvarada fenomenal de ontem.

Viajar para ver, cheirar, andar, provar, sentir, ouvir e depois voltar. Perder-se pelas ruas de uma cidade a ser desbravada. Contar tudo o que sabe sobre os dias vividos, para não desperdiçá-los. Ver bem os azuis, amarelos, roxos e laranjas da padaria e da frutaria. Transgredir quando o ar for pouco. Conhecer-se o suficiente para andar mais leve por aí. Apreciar a própria companhia. Dividir a vida com alguém, as possibilidades são infinitas. Trabalhar o quanto baste. Usar roupa surrada. Filigranas poéticas aparentemente tolas. Cantar antes, durante e depois do banho. Rir sempre que possível, fora e dentro. Doar-se em vida, repartir-se para que nenhuma parte morra antes da hora.

Árvores que ignoram o calendário. Viajar à China em pensamento. Olho no olho durante a conversa. Vinho tinto, vinho branco, espumante, frisante, vinho sempre, amém. A franga solta, que quem gosta de prisão é doente demais. Armários abertos, baús fechados, cumprir promessa de sigilo, contar sobre nós a estória em que acreditamos. Reinventar o passado.

Ou encontrar um sentido tão bom quanto simplesmente viver.

* * * * * *

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

4 comentários:

Anônimo disse...

DE TUDO QUE LI NA CRÔNICA DE HOJE, EXPRESSIVA E CLARA COMO SEMPRE, FICOU-ME A ÚLTIMA FRASE : ENCONTRAR UM SENTIDO TÃO BOM QUANTO SIMPLESMENTE VIVER . QUE É VIVER ? COMO RESUMIR EM PALAVRAS A GRANDEZA DO CRIADOR, PERMITINDO A NÓS, POBRES MORTAIS, A PASSAGEM PELA ESTRADA DA VIDA ?
VIVER.....VIVER....TÃO SIMPLES E TÃO COMPLEXO.!
BJS DA MUMMY DIRCIM

Anônimo disse...

QUE DELÍCIA! Li o comentário da Terê e vou um pouco além: CINESTESIA, pois o próprio corpo se movimenta ao sabor da brisa de suas palavras, em absoluto encantamento! Tâ

disse...

Felicidade pura ler um texto desse, que, com a permissão da autora, eu intitularia: SINESTESIA LITERÁRIA. Obrigada! Terê

Anônimo disse...

Presente de Páscoa!!
Melhor que todos os chocolates juntos!!
Muito obrigada!!
Beijo!
Carol Mendes

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