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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

As pequenas coisas


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

Completamente naturalizada para tantos de nós, a possibilidade de sair de casa de bermuda e chinelos para comprar pão ou algumas latas de cerveja gelada ali na esquina é tão banal que nem merece entrar na agenda. Numa entrevista dada às escondidas nos seus tempos de cativeiro de opinião, o escritor britânico Salman Rushdie, que esteve vários anos sob juramento de morte pelos aiatolás iranianos, por ter supostamente ofendido o Islã, e precisou viver escondido e confinado, mencionou o prazer de ir à padaria como um sonho recorrente e intangível.

Um alto preço, este de se ver privado das pequenas coisas. O sentido de desfrutá-las deriva da liberdade para se levantar do sofá e ir até a padaria, na hora que der na telha. Nenhum confinamento, por qualquer razão que seja, permite esta sensação. E ela é ampliada e intensificada quanto maior a nossa capacidade de perceber o deleite que, assim como o diabo, está nos detalhes, nas pequenas coisas. É preciso estar atento e se deixar contaminar.

Nos meus longos anos de viajante frequente, o luxo consistia em acordar na minha cama, tomar o café da manhã na minha cozinha e sair dirigindo para o trabalho, cada item desfrutado ao máximo, como se o dia seguinte dependesse do prazer encontrado daquele cotidiano tantas vezes interrompido. E dependia mesmo. Os dias de miudezas me proporcionavam a troca de afeto olho no olho com as pessoas essenciais. E, para me sentir mesmo como uma rainha, reservava as férias inteiras para ficar em casa.

Miudezas são os grãos, as células, os delicados fios da trama daquilo que entendemos como vida. O afago na cabeça do gato, o trivial do almoço arroz-com-feijão-e-mistura, a revista folheada a esmo, o banho quase frio neste calor dos diabos, a novela das nove, a rápida troca de “oi! tudo bem com você?” de todo dia ao telefone, o livro lido de uma sentada, o passeio com o cachorro, as bobagens conversadas no café do escritório, a cama e o sono compartilhados parece que desde sempre. Suco de fruta fresca e o vinho da conversa frouxa também participam das pequenas coisas.

Tanto quanto o ato de votar que, ao ser incorporado a este rol, cumpre a sua vocação máxima, de nos inserir na tomada de decisões políticas como a coisa mais natural e corriqueira do mundo. Gosto muito.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Pequenas grandes coisas da vida !!! Liberdade para calçar aquele chinelo velho que acaricia meus pés cansados !!! Sim, são as "coisas da vida que fazem a viver".
Crônica preciosa, de valorização dos detalhes que, na verdade, não são detalhes, mas, sim, a essência do viver.
Parabéns ao Fernando por sua ilustração tão dia-a-dia. Parabéns à Júnia , que consegue descobrir nas pequenas coisas inspiração e doçura para amenizar as tribulações.
Beijos da Mummy Dircim

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