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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Mulheres do Desmundo


por Nina Madsen*

Dentro da gente mora um mar de mundo, um mundo de mar. Ora calmo, ora bravio, ora puxando pra dentro, ora transbordando pra fora. Desse mar de dentro, sentada em meu barquinho, vejo, sinto, reconheço. E me conecto. Dia desses, agitou-me o mar das ideias o encontro com um grupo de mulheres de pra lá desse mundo – mundo esse mesmo, racista e misógino, em que vivemos. Mas mundo outro também, do reverso, do avesso. Cabeça pra baixo, pra cima, pra todos os lados. Consciente e liberta, guerreira e dançante, forte e suave.

(Re)conheci nomes e lutas, passos e cadências. As risadas. Os olhos marejados e transbordando. Os cabelos em cachos, em cachoeiras, em tranças, em corredeiras.

Das histórias que ouvi, ficaram-me algumas. Brotaram-me outras tantas.

Contou Natalia Maria a história de sua mãe, guerreira de pele preta, de herança indígena e de nome russo, que, por amor ao Japão, carregava os filhos de onde fosse para ver o que se pudesse ver da terra das bandas de lá do horizonte (é tanta volta no ser-mundo de cada quem, pra quem pára pra ouvir uma história...). E que por insistência e teimosia, faz-se viva a si mesma e a seus filhos e filhas, todos virados, teimosos, disse Natalia Maria, todos guerreiros por um mundo onde caibam no lugar que quiserem ocupar. Natalia Maria, Kamali Bantu, Cora. Guerreira de tantos nascimentos e renascimentos, poeta da lucidez, forjada na clarividência inequívoca de seu direito a um lugar nesse mundo. Haja teimosia, abençoada teimosia – cadente, candente, envolvente. Teimosia que pega, essa de querer ser gente sem pedir licença.

Ouvi também a história de terras distantes que contou Jelena, que veio de longe, fugindo da guerra, fugindo do ódio. Fugiu para viver e lutar, mas também para rir sua risada retumbante – quase Irene –, para bailar livre, em transe, cor de rosa choque.

Pensei então nas histórias não contadas de tantas vidas teimosas e guerreiras, alegres, pulsantes, discretas, marcantes. Pensei nas histórias interrompidas, nas histórias resgatadas. Em como nos tocam e transformam as histórias. E em como me tocam e transformam as histórias dessas mulheres do mundo do avesso, do mundo que teima em desmundar-se.

Pensei que então o jeito é ser teimosa também, bem muito teimosa. Teimosa demais, para que parem de morrer Alynes, Claudias e Jandiras. Teimosa pra seguir dançando, caminhando, pra seguir rindo e chorando, pra seguir resistindo junto de quem resiste. Para ser o que se queira e o que se possa ser, onde quisermos ser. Teimosa por mim, por nós e pelas outras.

* * * * * *

Nina Madsen escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Integra o colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, e colabora com a Universidade Livre Feminista. Aventura-se pelo avesso do mundo quinzenalmente, na coluna Crônicas do desmundo. *Desmundo aqui faz referência ao romance de Ana Miranda, uma lindeza literária que nos conduz pelas fronteiras entre o real e o onírico. Ilustração: quadro de Pablo Picasso, Mulheres Correndo.

Um comentário:

Gisele Rocha disse...

Inspiradora, Nina Madsen. Continuemos teimosas em movimento. Bjs

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