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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Tempo de luta

por Nina Madsen*

O vento faz a curva e me sopra a saia, que seguro ligeiro para não passar por nenhum desnecessário constrangimento. Os cabelos emaranhados me entram na boca e nos olhos, que já ardem pela poeira levantada. Resisto ao impulso de praguejar e reconheço aquela presença forte que não pede passagem, anunciando tempos de luta.

Subo as escadas, passo pelo comitê eleitoral do candidato que não foi eleito. Fechado. Na foto, já sendo arrancada, ele aparece ao lado do outro candidato, que também não foi eleito. Sentada na soleira da porta fechada, uma senhorinha que todos os dias pede uma ajuda pelo amor de deus. A outra, mais jovem, negra também e mãe de um bebê de colo, hoje não estava.

Sigo. Atravesso a rua e vou subindo a galeria. Dia de feira, o rapa não vem. Blusas, bolsas, jaquetas, sapatos, desodorante e perfume, brinquedos, bijuteria, seu nome inscrito no arroz, eletrônicos, livros usados, frutas, açaí, quentinha pro almoço e o que mais se quiser comprar. O engraxate de expressão leve e resignada veste um paletó que é o dobro do seu tamanho e posso sentir a dignidade que habita o gesto de colocá-lo todos os dias, faça o calor que fizer.

Passa por mim uma jovem estudante correndo atrás de um rapaz a quem tenta abordar para convencê-lo a comprar chaveiros para ajudar a “salvar a família”. O rapaz nem olha, segue andando em seu passo acelerado. E ela acompanha e fala sem parar, imbuída daquela absurda missão. Dobro a esquina e me deparo com aquele corpo magro, muito magro, e praticamente nu. A pele amendoada, os cabelos amarelos em desalinho. Os olhos em desalinho, a alma em desalinho. Ela vaga por ali às vezes. E quando não aparece, me pergunto aflita se seguirá viva. Ela percebe meu olhar, ergue o queixo e passa as mãos pelos cabelos. Dignamente.

Entro no prédio – bom dia, dotôra. Me olho no espelho e me vejo tão branquinha, com essa minha cara de bem nascida, que imediatamente troco o não sou dotôra por um sorridente bom dia. Por aqui, dotôra, afinal. Suspiro. Entro no elevador. A subida é longa e lenta e sempre assenta em mim o peso da contradição cotidiana que carrego comigo, existindo dotôra naquele espaço de não-dotôres.

E começo a lida. Que não costuma trazer boas notícias, devo dizer. A vida em uma organização não governamental feminista no Brasil nunca foi exatamente fácil, mas, segundo me contam, já esteve mais farta de possibilidades de avanços. Elas hoje são escassas. Quando aparecem, nos agarramos com força. E enquanto não, a força é a de resistência para conter os absurdos multiplicantes que nosso sistema político tem conseguido produzir.

À beira desse segundo turno, é nesse espaço que situo meu voto. O espaço da (in)dignidade humana, das desigualdades e das contradições. O espaço tão reduzido para os avanços pelos quais lutamos. Não, não é o Brasil dos ovos de ouro. É certo que é um país diferente do que era 12 anos atrás. Melhor, apesar de tudo. Não melhor o suficiente, não melhor como poderia ser ou como gostaríamos que fosse. Mas melhor, com algumas escolhas acertadas que fazem muita diferença. Com outras tantas escolhas equivocadas, é verdade, que também fazem muita diferença e que embolam o meio de campo de um jeito complicado. A escolha desse segundo turno não me resulta difícil, é Dilma, sem dúvida. É uma escolha coerente com o esforço de conter retrocesso atrás de retrocesso. Mas é uma escolha que não me contempla inteiramente. Não responde às mudanças que gostaria de ver anunciadas e assumidas em compromisso.

Pelo menos daqui de onde vejo, muitas das mudanças de que também precisamos não vêm sendo anunciadas nos milionários programas do horário eleitoral gratuito e obrigatório. Por força de um sistema político escangalhado, de um conservadorismo crescente e fortalecido, elas não podem ser propagandeadas em campanha de candidato ou candidata que queira ser eleito. Pra se ganhar, tem que se jogar o jogo. Apertar a mão de quem não se deve. Silenciar o grito de quem não pode se calar. Pra ganhar, temos que perder muito (o que é, para mim, bastante devastador, tenho que admitir).

Meu voto em Dilma nesse domingo é um voto no contraditório que ainda identifico nesse governo. Um voto nos ideais ainda vivos e pulsantes de um partido sim de esquerda, um voto na voz crítica de seus militantes. Um voto nas frestas e nos poros por onde ainda podemos passar. Porque precisamos passar. Acima de tudo, acredito que o que irá decidir os próximos quatro anos no Brasil será a nossa capacidade de seguirmos organizadas, atentas e fortes, resistindo e insistindo. De estarmos prontas, sem medos que nos silenciem, sem amarras que nos impeçam o passo. Porque os ventos não sossegam: é tempo de luta.

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Nina Madsen escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Integra o colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, e colabora com a Universidade Livre Feminista. Aventura-se pelo avesso do mundo quinzenalmente, na coluna Crônicas do desmundo. *Desmundo aqui faz referência ao romance de Ana Miranda, uma lindeza literária que nos conduz pelas fronteiras entre o real e o onírico.

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