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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Agradecida

por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

De tempos em tempos, aparece em alguma revista semanal um longo artigo sobre os avanços da medicina no tratamento de bebês prematuros. Falam sobre como evoluíram o conhecimento sobre o assunto, os equipamentos e a capacidade de fazer sobreviverem prematuros cada vez mais prematuros e menores. As matérias incluem testemunhos de pais, médicos e outros profissionais sobre as complicações e situações-limite, e também sobre a satisfação com os resultados obtidos, pois muitas dessas crianças – mas não todas – superam as dificuldades iniciais e vivem sem qualquer sequela importante.

Se bem que tudo depende das circunstâncias. Acabo de ver uma reportagem na televisão sobre o fato de a prematuridade ter sido alçada ao topo da lista mundial de causas da morte de crianças com até cinco anos de idade, um posto até recentemente ocupado pela pneumonia. Este fato pode ser um reflexo da tendência de tentar salvar bebês cada vez menos amadurecidos, e em condições extremamente precárias, além de trazer embutidas as dificuldades de atendimento em lugares que carecem de recursos médicos, econômicos e educacionais adequados.

Eu nasci prematura, na segunda metade da década de 1950, no interior de São Paulo. Segundo a informação que me chegou, uma bebê bastante frágil, com baixo peso e estranhos sintomas, que ora me parecem uma síndrome respiratória típica, ora “petit mal”, dependendo da ênfase de quem relata. Até onde sabemos, não houve um diagnóstico definitivo.

Com alguns meses iniciais na incubadora, e depois muitas idas e vindas ao hospital, meu primeiro ano foi bem atribulado. Entretanto, dos tais sintomas, não restou nenhuma sequela. Embora tenha demorado um pouco para cumprir as primeiras etapas de desenvolvimento psicomotor, por volta do segundo aniversário eu já era uma menina perfeitamente ajustada ao ritmo da infância considerado normal.

Mas não foi bem assim. Levei muitos anos para perceber que aquela sombra que eu sentia me encobrindo desde que me entendia por gente tinha um nome: dor. O frio interno, a sensação de abandono, aquela ferida que me fazia sangrar por dentro o tempo todo, e que não tinha razão compreensível, atendiam todos pelo nome de dor. Hospital, solidão, luz artificial, tristeza, desconforto, e sabe-se lá que outras experiências parecidas, que hoje considero superadas, deixaram suas marcas.

Fotos de super-prematuros acomodados na palma das mãos dos adultos me dão pânico. Tenho vontade de gritar, de sair correndo. As revistas têm um prazer todo especial em exibi-las nas suas capas. As façanhas médicas fascinam e estimulam mães e pais a buscar, compreensivelmente, que seus bebês vivam, não importando as dificuldades implicadas. Os médicos têm aí oportunidades preciosas de exercer e exibir suas habilidades, técnicas e competências. Felizmente, pelo que tenho lido nos últimos tempos, tem havido uma crescente preocupação com tratamentos e abordagens menos invasivas e agressivas e mais voltadas para proporcionar acolhimento adequado, conforto e bem-estar às criaturinhas que chegam ao mundo antes da hora.

Viver vale a pena, sempre. Eu não preferiria ter aberto mão da experiência vital, mesmo porque aquilo tudo ficou bem lá atrás, mas talvez sobreviver pudesse ter envolvido menos dor e sofrimento. Naquele tempo, acho que isto não teria sido possível, e sei que recebi o melhor que estava ao alcance. Por mais distante no tempo que esteja a minha experiência, é alentador saber que a neonatologia está indo além da garantia da sobrevivência física e tem cada vez mais voltando seus esforços para o alívio do desconforto, tensão e dor dos prematuros. Agradeço de coração, profundamente, qualquer esforço neste sentido.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

2 comentários:

Anônimo disse...

Só posso agradecer a Deus o fato de ter mantido a chama da vida na minhas bebê. A luta foi totalmente compensada ao longo dos anos ao ve-la, hoje, refletida nesse raio de sol que sofreu pela sobrevivência e, pelo tempo afora, tem sido uma luz a me ajudar no caminho.Obrigada, minha .bebê.; sua luta incomensurável não foi em vão.
Deus continue a dar-lhe esse ânimo que só os lutadores conseguem no mar encapelado do viver.
Bjs da
Mummy Dircim

Anônimo disse...

Querida
Que depoimento pessoal importante!
Toda o que envolve os peimeiros contatos com o " mundo" sào tão determinantes para como nos constituimos.
E só quando conseguimos nos reconciliar com nosso destino nos reconciliamos e agradecemos pelo que somos... E vice versa
Beijo!

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