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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 31 de março de 2015

Sorria, mantenha a linha e não se afogue


por Fernando Evangelista*

No dia 10 de junho de 1914, o capitão escocês C. H. Brown acordou às quatro e meia da manhã, fez xixi no penico, vestiu a roupa, colocou o suspensório, olhou-se no espelho e disse: “É hoje!”.

Amante das marés traiçoeiras e das mulheres perigosas, de bacalhaus e papagaios, o capitão era instrutor da Escola de Navegação de Glasgow e realizava uma pesquisa sobre as correntes marítimas da Escócia.

O método consistia em lançar garrafas ao mar, colocando no interior uma mensagem explicativa sobre a pesquisa e um pedido de devolução a quem as encontrasse. Com a informação do horário e do local onde o objeto fosse resgatado, o cientista poderia mapear a rota percorrida, identificando as correntezas. Em 1914, o capitão lançou 1.890 garrafas ao mar.

O tempo passou, apenas 315 foram achadas, o cientista morreu e a pesquisa obteve sucesso considerável, mas havia sido completamente esquecida. E seria o fim desta história não fosse um cidadão escocês de 43 anos, gordinho e careca, chamado Andrew Leaper.

Em abril de 2012, na costa das ilhas Shetland, ele pescou uma das garrafas, exatamente 97 anos e 309 dias depois de ter sido arremessada ao mar pelo capitão Brown. O Livro Guinness dos Recordes confirmou Andrew como o autor do resgate da mais antiga garrafa com mensagem no mundo.

Com o jornal nas mãos, Leopoldo - o sábio dos balcões, filósofo bêbado do Rio Tavares, - leu essa notícia em voz alta para que todos ouvissem e como estávamos só ele, o dono do bar e eu, sua missão teve êxito.

Leopoldo dobrou cuidadosamente o jornal, colocou-o sobre o balcão, olhou para o copo de cachaça na sua frente, olhou para o ventilador de teto, deu uma geral no bar vazio à sua volta, fez que ia pegar o copo, mas pegou o meu braço e disse:

– Meu rapaz, nesta história da garrafa, neste pedacinho de jornal, está a tradução da minha vida e da vida de um bocado de gente.

Farejei o início de lampejos metafísicos. Pelo espelho, o dono do bar lançou-me um olhar que dizia sem dizer: “é sempre assim”, e concentrou-se na lavação dos copos, na nossa frente.

– Eu sou – continuou Leopoldo, com seu jeitão antigo e formal – este velho capitão a jogar mensagens no oceano, com a esperança de que alguém as encontre e as compreenda. Sou aquele que espera e vai fingindo paciência, fingindo não se importar.

– Isso parece letra de samba – eu disse.

Leopoldo esvaziou o copo e prosseguiu:

– Eu sou um pedaço de papel, enclausurado numa maldita garrafa, às vezes em branco, à espera de ideias, outras vezes manchado de erros, à espera de correção. Sou também a garrafa que, mesmo não querendo, mesmo com alguma resistência, vai seguindo a correnteza, indo para direções incertas, talvez girando em círculo, como esta do jornal, achada a apenas 18 quilômetros de onde foi lançada.

– De uma forma ou de outra, quase todo mundo está em busca de um porto seguro – interveio o dono do bar.

– Nada faz sentido – arrisquei.

– Ateu! – gritou o filósofo. Apontou o copo vazio sobre o balcão para que o dono o enchesse mais uma vez e prosseguiu, comparando-se ao mar, imprevisível, marcado por naufrágios, profundezas e por outras coisas que não cheguei a compreender. Parecia mesmo letra de samba.

Com um discreto balançar de cabeça, Leopoldo agradeceu mais uma dose servida pelo dono da bodega, deu outra espiada no ventilador de teto e seguiu a ilação:

– Nosso grande medo é ficar à deriva, sem alguém para nos acolher, é ver o mar nos engolindo e não dar conta do que nos exigem e eles exigem a mesma coisa em todo lugar: “sorria, mantenha a linha e não se afogue”.

Fez uma pausa e seu rosto ficou iluminado.

– Duas coisas, porém, duas coisinhas o marzão não vai me levar, porque são minhas e delas não abro mão.

E mantendo o tom grave e teatral, concluiu:

– Ninguém tasca a minha liberdade e a minha lucidez.

Sorriu, secou mais um copo de cachaça e se foi, sem pagar a conta.

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Fernando Evangelista é jornalista e documentarista. Trabalha na biblioteca comunitária Barca dos Livros em Florianópolis. Esta crônica, publicada ano passado aqui no Nota de Rodapé, foi reescrita e fará parte do livro O Piano de Casablanca (Editora Insular), que será lançado em maio.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Insignificância


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

 "Como brilha a insignificância das pessoas quando as coisas começam a dar errado." Comentário ácido e certeiro da escritora espanhola Rosa Montero, a propósito de um funcionário sindicalista que quer se aproveitar do assassinato de uma líder para emplacar sua carreira política. Pulou do papel enquanto eu lia o romance de ficção científica "Lágrimas na chuva", cujo bem tramado enredo gira em torno da uma detetive androide, contratada para investigar uma série de mortes de semelhantes seus, num futuro situado no ano de 1109.

Com a criatividade e a competência que lhe sobram, e tendo como ponto de partida a cena final do filme "Blade runner" (quando o protagonista replicante, antes de morrer, diz: "vi coisas nas quais vocês não acreditariam… todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva"), Rosa coloca humanos e androides numa convivência complicada, permeada por situações que remetem às crenças supremacistas e práticas racistas que conhecemos tão bem. No futuro imaginado por ela, o caráter e o comportamento humanos continuam intactos, bem como a recorrente ênfase da autora na empatia e solidariedade entre os marginalizados e os esquisitos, uma das características mais cativantes da sua escrita. Para o grande prazer de seus leitores, ela já escreveu sobre um bocado de coisas.

A frase é tão bem sacada que dá a sensação de ser, simultaneamente, uma bela surpresa e uma velha conhecida. Isto acontece sempre que alguém consegue dar uma forma exata a algo que captamos ou sentimos, mas não conseguimos ou não nos detemos em formular. Tive que compartilhá-la.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 26 de março de 2015

Sem depois

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.



por Fernanda Pompeu ilustrações Fernando Carvall

Wilson Silva
Nascimento: 21 de abril de 1942
Cidade natal: Taubaté - SP
Data do desaparecimento: 22 de abril de 1974

No dia anterior ao seu desaparecimento e de sua mulher Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva havia completado 32 anos. Certamente no aniversário dele, e da morte de Tiradentes, deve ter lembrado de Taubaté - onde nasceu e viveu até os 19 anos. Depois, repassou sua vida de estudante de física na USP. Certamente pensou na sua paixão pela militância política, primeiro na Polop, agora na ALN. Ele e Ana estavam na ação por um país diferente do da ditadura militar. Uma terra melhor para todos. O que ele não sabia é que não haveria outros aniversários.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto. Fernando Carvall é o homem da arte.

terça-feira, 24 de março de 2015

A luta de classes, essa velha senhora, não morreu

por Celso Vicenzi*

Que fique claro, desde o início. Toda corrupção precisa ser combatida e punida. Apesar de redundante, cabe frisar: isso vale para corruptos e corruptores. E o rigor que vale para uns, deve valer para todos.

A corrupção está presente em todas as esquinas e praças do cotidiano brasileiro, nas esferas pública e privada, religiosa e filantrópica. Em todos os poderes, inclusive no Judiciário, onde é mais difícil pôr a mão. Basta lembrar que membros desse seleto grupo de “justos”, quando pegos cometendo arbitrariedades, raramente são punidos. Costumam ganhar como "pena" uma aposentadoria precoce. Ou seja, geralmente são "punidos" com férias eternas e um ótimo salário pago por todos nós.

Já houve casos de juízes vendendo sentenças. Qual a extensão desse tipo de irregularidade ou crime, se considerarmos que são milhares de ações que tramitam em juízo, envolvendo, diariamente, enormes quantias? Teriam alguns juízes a necessária isenção para investigar seus pares ou o corporativismo falaria mais alto? Fácil imaginar o quanto de tráfico de influência pode transitar em decisões que, apesar de sustentações técnicas, podem esconder, às vezes, interesses muito particulares. Numa sociedade permeada pela corrupção, difícil imaginar que o Judiciário seja uma ilha distante e imune ao que acontece no país, onde parte de seus magistrados participa, inclusive, de festas com os donos de boa parte do PIB brasileiro volta e meia envolvidos em escândalos de corrupção ou negócios que terão que ser decididos em diferentes instâncias judiciais.

No Brasil, no entanto, onde a cultura da corrupção teceu fortes raízes, elege-se apenas meia dúzia para pagar a conta desse "banquete de justiça". Coincidência ou não, isso acontece justamente quando o Estado brasileiro passa a investir mais em políticas públicas que reduzem a desigualdade social. Que integrantes do PT envolvidos com corrupção precisam ser alcançados pela lei, nenhuma discordância. Assim como os do PSDB, PMDB, PP, DEM...

Mas esse é apenas o efeito colateral das investigações. O que, parece, se busca, é deslegitimar a vitória de Dilma nas urnas, porque o partido teria recebido dinheiro de empresas envolvidas na Operação Lava Jato. Pouco importa se o dinheiro foi legalmente declarado ao TSE. Ou se as mesmas empresas financiaram todos os principais partidos. O foco é o PT. Única e exclusivamente o PT. As exceções apenas disfarçam a regra.

Teriam alguns integrantes desse partido desviado mais recursos do que outros? Estaríamos, como querem os principais comentaristas de jornais, rádios, web e tevês, principalmente da Rede Globo, diante “do maior caso de corrupção do país”? Difícil dizer, porque não houve, no passado, empenho semelhante para investigar outros escândalos. E também porque agora, quando surge a oportunidade de retroceder a governos anteriores aos do PT, há um indisfarçável desinteresse. Tanto que a CPI da Petrobras, no Congresso, não aceitou estender as investigações para o período dos governos de FHC, embora o mesmo doleiro que denunciou o PT tenha dito que já havia corrupção na Petrobras em 1997.

O empresário Ricardo Semler, filiado ao PSDB, afirmou em artigo na Folha de S. Paulo (21/11/2014) que “nunca se roubou tão pouco” e que já nos anos 70 sua empresa deixou de fornecer equipamentos para a Petrobras porque “era impossível vender diretamente sem propina” . A empresa da qual é sócio também tentou fazer negócios nos anos 80, 90 e até recentemente, mas desistiu porque o esquema sempre foi o mesmo. Nos últimos 40 anos, disse ele, só mudaram os percentuais da corrupção, que “caíram”. Ou seja, na contramão do que boa parte das emissoras de rádio e tevê, jornais e web tenta induzir, a corrupção na Petrobras vem de longa data e já foi bem maior. Nem vamos imaginar o que pode ter ocorrido no período da ditadura, quando ninguém ousaria investigar algo semelhante.

Há, portanto, um indisfarçável show de cinismo e hipocrisia. A justiça, em tese, deveria ser igual para todos. Não é e não tem sido assim, infelizmente. Derrotado quem se quer derrotar, alguém tem alguma dúvida de que o zelo do Judiciário e as denúncias dos principais meios de comunicação não terão mais o mesmo ímpeto contra outros corruptos e corruptores? Isso já acontece neste exato momento, quando alguns notórios corruptos e corruptores são poupados enquanto outros são massacrados. Muitos desses cidadãos envolvidos em escândalos, aliás, participaram das manifestações sem que a mídia tentasse ao menos desmascará-los. É um jogo de aparências, de mais sombra ou mais luz conforme as conveniências da mídia e de outros atores interessados. O que a sociedade brasileira deveria exigir é a equidade no tratamento das investigações, seja da justiça, seja da mídia.

Resultado de uma deturpação de nossa democracia, graças a abusos que não são coibidos, os veículos de comunicação inverteram o principal alicerce do Direito: agora todos são culpados até que se prove o contrário. E basta divulgar nos meios de comunicação os nomes dos acusados para a população condenar, antes que seja concedido o direito de defesa. Resultado de anos e anos de um jornalismo sensacionalista, substituímos a democracia por uma midiocracia. De nada resolve dizer que a mídia não condena quando ela promove uma superexposição do(s) acusado(s), sem o mesmo espaço para a defesa. Se, depois, o Judiciário vier a absolver, como algumas vezes acontece, pouco importa. Os denunciados já foram condenados à execração pública para o resto de suas vidas.

Claro que os meios de comunicação são fundamentais ao exercício da democracia, desde que não se especializem – como ocorre, não raro, no Brasil – em dar sustentação a partidos de oposição ou de situação, conforme a conveniência, ou, ainda, para dar suporte ou desestabilizar governos que não atendam a seus interesses ou de seus "clientes" (os donos do capital). Pra quem confunde justiça com vingança, tá ótimo! E se alguém achar que não tem a mão da CIA e dos EUA em todos os movimentos de desestabilização de governos latino-americanos que não se alinharam com Washington, ganha um doce, por sua ingenuidade.

Portanto, combater a corrupção, sim. Derrubar um governo com um golpe jurídico-midiático (militar parece uma hipótese mais remota), para abrir caminho para os interesses de classe e das grandes potências, NÃO.

Aperfeiçoar a democracia, sim. Fazer do combate à corrupção, nas ruas, uma escada para a ascensão de grupos fascistas e totalitários, NÃO.

Punir com o mesmo rigor todos os que se envolvem em corrupção, sim. Eleger apenas alguns para pagar essa conta, NÃO.

Investigar e punir quem tem culpa em cartório, sim. Usar as investigações para quebrar empresas brasileiras que garantem milhares de emprego, NÃO.

Fazer manifestações contra os escândalos de corrupção (todos!!!), sim. Achar perfeitamente normal caminhar lado a lado com fascistas, sexistas, sociopatas, homofóbicos, religiosos fanáticos e pessoas que pedem intervenção militar e não respeitam os Direitos Humanos, NÃO.

Ir às ruas gritar contra a corrupção, sim. Utilizar-se de "jeitinhos” – bem brasileiros! – para obter vantagens para si, familiares, amigos ou parentes, NÃO.

Desejar um Brasil melhor (para quem, para quantos?), sim. Dissimular o ódio às transformações sociais com o álibi de combater a corrupção, NÃO.

Aceitar as regras da democracia e lutar para que os Três Poderes e a sociedade façam os ajustes necessários ao desenvolvimento do país e ao combate à corrupção, sim. Disfarçar preconceitos de classe para pedir a derrubada de um governo legitimamente eleito e que, com todos os defeitos, permitiu a ascensão das camadas mais pobres, NÃO.

Entre o sim e o não, caminharemos para um Brasil com menos desigualdade, mais Direitos Humanos, que reafirme a sua soberania diante dos interesses das grandes potências. Ou para um Brasil novamente (mais) excludente, concentrador de renda e subserviente aos poderosos donos do capital internacional, como quase sempre aconteceu, ao longo da história.

Combater a corrupção é fundamental, mas isso não pode servir como uma cortina de fumaça para permitir que as maiores conquistas sociais do povo brasileiro, atestadas por idôneos organismos nacionais e internacionais, sejam golpeadas por ações jurídico-midiáticas com o intuito de desestabilizar um governo e aniquilar os avanços obtidos nessa área nos últimos anos.

As consequências podem perdurar por décadas, como aconteceu com a ditadura, que ainda mantém influências na vida da população. E há risco de haver um grande retrocesso: político, econômico e social. Isso deveria ser o mais importante e conduzido com mais responsabilidade. A prisão de uma dúzia ou mais de pessoas não deveria ser feita sem medir as consequências, com os exageros apelativos de uma superexposição dos fatos na mídia, geralmente em tom sensacionalista, o que contribui para criar um clima de instabilidade e quase-histeria entre a população. Inclusive porque donos dos principais veículos de comunicação, dessa mesma mídia, e vários de seus colaboradores também estão envolvidos em um escândalo de contas secretas no HSBC na Suíça, fato que pode indicar crimes de sonegação, lavagem de dinheiro e informação privilegiada para auferir lucros no mercado financeiro.

 A luta de classes, essa velha senhora – para usar a metáfora do momento –, está nas ruas, novamente. Pode ser que a maioria não saiba, mas é disso que se trata, principalmente quando a justiça e a mídia parecem operar com dois pesos e duas medidas.

Se antes eram as camadas mais pobres que tomavam as ruas para reivindicar direitos. Agora, majoritariamente, são as camadas de maior poder aquisitivo, que não aceitaram a quarta derrota eleitoral seguida e clamam por impeachment ou intervenção militar. Sim, há o álibi de “varrer toda a corrupção”, eu sei. E sei também que há muita gente bem intencionada, críticos de um mau governo. É possível encontrar cidadãos e cidadãs, com razão, indignados com um partido que elegera a ética como uma de suas bandeiras. Há também muitos ingênuos e desinformados, incapazes de perceber outras intenções por trás de quem lidera os protestos. E há, ainda, não poucos, querendo enganar a outros ou a si. O que sei, também, é que o jogo que se joga neste momento é bem maior do que o necessário e desejável combate à corrupção.

Cidadãos e cidadãs estão convidado(a)s a assumirem suas responsabilidades nessa jornada por um Brasil melhor. Mas é preciso definir desde já: melhor para quem, para quantos? O combate seletivo e parcial à corrupção, com ares de solução para todos os males, é apenas pretexto para ocultar onde se quer chegar. A luta de classes está aí, mais viva do que nunca.

Que tenhamos boa sorte!

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Washingtonianas

por Nina Madsen*


Viver em um país diferente do seu é reaprender a vida cotidiana todos os dias. Um exercício de alteridade e de desautomatização que sempre me pareceu dos mais estimulantes e, ao mesmo tempo, inquietantes. O familiar, o que se faz já sem sequer pensar, os códigos incorporados nas pequenas rotinas diárias – é tudo novo. No detalhe. Atravessar a rua, entrar e sair do supermercado, subir e descer escadas, cumprimentar os vizinhos, relacionar-se com prestadores de serviços... enfim, a lista é longa.

E no topo da minha, tem estado, ultimamente, o manter-se informada e situar-se em um novo contexto político. E olha que é dos EUA que estou falando, nada assim tão distante da nossa americanizada gramática política e cultural. Mas o fato é que ler os jornais todos os dias tem sido como ler um mapa ao caminhar pelas ruas de uma nova cidade. Primeiro, você mal consegue se situar no miúdo das ruas mais próximas (bem, talvez não você, orientada/o de nascença, mas eu sou assim, ligeiramente perdida nos espaços concretos da vida), para então começar a adquirir alguma noção de sentidos, bairros, movimentos urbanos. Até se sentir no domínio do espaço leva algum tempo. E até se sentir no domínio do contexto político de cada notícia também. Não tenho visto noticiários na televisão – hábito que já não tinha no Brasil e que decidi manter afastado da minha rotina por aqui. Então, converso com as pessoas, leio o jornal e escuto o rádio. E que instituição, o rádio! Nada empoeirado, nada envelhecido, o rádio é fresco e revigorante. São muitas as estações, algumas com alto grau de engajamento político.

Foi no rádio que ouvi, no dia 11 de março, que Obama declarou a Venezuela uma ameaça à segurança nacional. À segurança nacional dos EUA, veja bem. E que Maduro respondeu dizendo que, oras, ameaça à segurança nacional são os EUA! E depois ouvi as análises dos especialistas convidados, todas destacando o equívoco de Obama ao jogar lenha nessa fogueira. Ouvi que estão substituindo Cuba pela Venezuela como bode expiatório na América Latina. Que a Cúpula das Américas está chegando e as manifestações se farão sentir, comprometendo inclusive a recente reaproximação entre EUA e Cuba. Que a dureza das declarações sobre a Venezuela não são nada coerentes com o retardo e a quase negligência das declarações e ações a respeito do que tem acontecido no México, por exemplo. Ouvi uma representante da Casa Branca sendo descascada por repórteres em uma coletiva, ao afirmar que os EUA há muito tempo não se envolvem com mudanças de poder e de governo inconstitucionais. “Como assim, não se envolvem?”. “A senhora poderia definir o que considera muito tempo?”. “A senhora poderia definir o que o governo considera inconstitucional?”.

Tenho ouvido também, desde o início da semana, que em Ferguson a luta pelo enfrentamento ao racismo continua com força. As pessoas seguem nas ruas, fazendo muita pressão. Especialmente depois do julgamento que inocentou o policial que matou Michael Brown. O Departamento de Justiça divulgou um relatório que traz dados sobre o racismo institucional e seu impacto nas ações da polícia (confira aqui). Logo depois, vieram a público trocas de e-mails entre policiais com expressões bastante explícitas de racismo (leia mais aqui). Resultado? Departamento de polícia em crise, com pedido de renúncia de policiais e, mais recentemente, do chefe da polícia. Que, aliás, demorou demais, como afirmaram manifestantes à repórter da rádio. [A rádio a que me refiro é a WPFW, que você pode conhecer e ouvir online, aqui].

E assim vão compondo meu mapa político as notas washingtonianas capturadas a cada dia. Um mapa tão parecido e, ao mesmo tempo, tão diferente daquele ao qual me acostumei no Brasil. Parecido o suficiente para reconhecer, por exemplo, em Ferguson, nossas racistas cidades e polícias brasileiras. Diferente o suficiente para me inquietar ainda mais diante de sua violenta resistência a toda e qualquer evidência de que o racismo segue matando muito, todos os dias.

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Nina Madsen. Escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Desde janeiro de 2015, vive em Washington, DC – novo cenário de aventuras e leituras pelo avesso do mundo.

sexta-feira, 20 de março de 2015

A birosca do Josué


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

Acabo de passar um grande susto. Caminhava pela vizinhança, fazendo aquelas averiguações de praxe ao circularmos nos nossos lugares de referência, quando se fez um vazio: a birosca do Josué não estava mais lá, e no seu lugar encontrei um pequeno edifício de apartamentos.

A uma centena de metros de casa, forneceu picolés, pirulitos, chicletes, refrigerantes e biscoitos recheados clandestinamente aos meus filhos crianças, pois esses eram itens que eu supunha controlados pelo nosso zelo parental, observado com algum rigor. Descobri, há não muito tempo, que os caraminguás que recebiam toda sexta-feira, como virtuoso treinamento orçamentário, eram torrados no Josué, sob a proteção da empregada, mais generosa com os meninos do que preocupada com açúcar e cáries. A revelação me enterneceu profundamente. Depois eu soube que comprar cigarros para ela era a recompensa.

Fiquei atônita, parada na calçada, examinando desarvorada o lugar onde deveria estar a venda. Como assim, sumiu? Da creche pública recém-inaugurada saíam as crianças ao final do turno, acompanhadas de mães ou avós, e ninguém dava a mínima para a minha aflição. Nenhum pedestre que passava por ali me deu qualquer indício de consternação. Acabou e pronto.

Eu mesma entrei poucas vezes na espelunca, apesar das décadas de vizinhança. A cabeça e a agenda estavam cheias de coisas maiores, mais urgentes e importantes que caminhar pelo bairro. Ir ao supermercado de carro era muito mais prático e eficiente.

Parece que faz tanto tempo e, ao mesmo tempo, posso tocar com a ponta dos dedos aqueles dias em que a rotina era pautada pelo horário do transporte escolar, o cardápio era ditado pelas preferências infantis e o calendário festivo era enfrentado sem muito entusiasmo, mas tentando não contaminar as crianças com a minha impaciência diante de celebrações obrigatórias e pré-fabricadas. A infância dos filhos, que, enquanto acontecia, às vezes parecia demorar-se um pouco além da conta, na verdade durou uns cinco minutos e me deixou aqui dentro uma nostalgia tranquila e conformada. Crescer é preciso e inadiável, então somos adestrados desde pequenos a ter responsabilidade e princípios, ou seja, a levar a vida a sério. Coisa sobre a qual, quanto mais o tempo passa, mais eu penso que estamos todos exagerando. Outra hora eu explico.

Mas não, a birosca do Josué não acabou. Eu é que caí numa dessas armadilhas que a mente nos coloca de vez em quando, e fui procurá-la no lugar errado. Acabei encontrando-a aonde sempre esteve, mas agora com o baú refrigerado de picolés do lado de dentro.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 19 de março de 2015

Buraco negro

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu  ilustrações Fernando Carvall

Ana Rosa Kucinski Silva
Nascimento: 12 de janeiro de 1942
Cidade natal: São Paulo - SP
Data do desaparecimento: 22 de abril de 1974

A professora saiu do Instituto de Química da USP avisando que iria almoçar no centro, lá pelas bandas da Praça da República, com o marido Wilson Silva. Ele, igual a ela, militava contra a ditadura. Nunca mais o casal foi visto. Os familiares perguntaram ao general presidente, ao ministro, ao bispo, ao universo: Onde está Wilson? Onde está Ana Rosa? Silêncio. Dezoito anos depois, Almílcar Lobo - tenente médico que dava suporte nas torturas - informou que Ana e Wilson foram assassinados na Casa da Morte em Petrópolis, RJ. Seus corpos foram despedaçados.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Marcha avante

por Tomas Chiaverini*

Foi um domingo assustador, com aquele ódio todo, bairros de classe alta em polvorosa, luzes piscando, buzinas, panelaço, como se estivéssemos prestes a sucumbir num torvelinho de uma revolta insana e descontrolada. Foi assustador porque mesmo quem não viveu a ditadura lembrou de imagens e relatos da “marcha da família com deus pela liberdade”, estopim do golpe de 1964 e de suas posteriores atrocidades. Lá, como cá, o que se viu foi um movimento encampado, não exclusivamente, mas, sobretudo, por uma elite reacionária.

Lá havia o fantasma do comunismo, os ecos da revolução Cubana que deixava as classes privilegiadas se pelando de medo de ter a prataria saqueada pelos bolcheviques. Cá, há um medo difuso de um comunismo que não existe senão como a sombra de um pensamento distorcido para um lado e para o outro ao longo do último século. Acima disso, há certa revolta diante da possibilidade de as regalias dessa elite acabarem divididas com o povo.

Tudo isso catalisado por uma presidente inábil, tanto na ação quanto no discurso. Uma líder que deveria ser um símbolo mas não consegue se livrar da vocação para a gerência. Que se cerca por uma equipe fraca e incompetente, sempre pronta a disparar medidas assoberbadas e contraditórias.

Os escândalos de corrupção, em especial na Petrobras, também servem de combustível, mas seria muita ingenuidade apontá-los como o motivo maior de tanta revolta. Basta levar-se em consideração que o carro chefe do descontentamento foi a cidade de São Paulo, reduto eleitoral de políticos como Paulo Maluf, o homem do “rouba mas faz”.

Motivações à parte, a coisa foi mesmo assustadora. A resposta, contudo, mostrou como a democracia avançou, e como a parte radical do movimento é frágil e quebradiça. Principalmente porque a resposta que veio não foi do governo apenas. Pelo contrário.

O primeiro esboço de resposta da presidente Dilma Rousseff ocorreu no pronunciamento desta segunda, em que a ex-presa política apelou para sua própria história e sentenciou: nunca mais alguém será perseguido, torturado ou morto por expor suas opiniões. Essa é a resposta a altura de um líder de estado, com toda a grandeza e simbologia que o cargo requer. Uma pena que tenha sido praticamente a única.

Por outro lado, bom que as respostas tenham sido plurais. Não como um grito, mas como um diálogo minimamente maduro e equilibrado. Ainda na noite de domingo, por exemplo, a Folha de S.Paulo, o maior jornal do país, cravou no topo de sua home uma manchete que ia contra a informação da Polícia Militar. Estimava haver 210 mil pessoas na Paulista, muito menos do que o 1 milhão oficial.

Caso os golpistas que clamam pelo socorro das forças armadas estivessem no poder, isso provavelmente seria o suficiente para empastelar o jornal e pendurar editores no pau-de-arara. A Folha, claro, não fez mais do que sua obrigação e é apenas um exemplo de uma postura que ajudou a esfriar os ânimos. Diante de reivindicações despropositadas como um golpe militar ou impeachment da presidente, uma infinidade de veículos e profissionais de imprensa se manifestaram pelo equilíbrio e em favor da legalidade e da democracia.

Não foi apenas imprensa. Os militares ignoraram o clamor da meia dúzia de abilolados e se calaram com profissionalismo e aparente respeito às demais instituições. E o próprio presidente da Câmara, Eduardo Cunha, cacique do PMBD, voz retrógrada na política brasileira e inexplicavelmente terceiro na ordem de sucessão presidencial, disse, reiteradas vezes, que não há motivo para impeachment. Um sinal claro, evidente, translúcido de que, ao contrário do que pregam os batedores de panela, nossa democracia está sim, avançando.

Esperemos, portanto, que o Ministério Público e a Polícia Federal siga escarafunchando nas gavetas do poder não apenas para encarcerar corruptos e corruptores mas também para mudar nosso status quo, que vai do jeitinho brasileiro às grandes negociatas. Que a população continue a se manifestar, pressionando governantes a tomarem atitudes mais sensatas. E que isso seja feito com liberdade, sem que ninguém tenha de ser perseguido, preso, torturado ou morto.

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Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha no Nota de Rodapé. Imagem: Paulo Whitaker/Reuters

segunda-feira, 16 de março de 2015

A lição de seu Valter


Protesto gigantesco na Paulista pede fim da corrupção e impeachment de Dilma, que continua apostando numa conciliação nacional difícil de vislumbrar


por João Peres e Tadeu Breda, Nota de Rodapé

Seu Valter não quer ser Fla nem Flu. E hoje, domingo, é dia de Fla-Flu – ou melhor, de Fla, porque o Flu teve a chance na sexta-feira. Seu Valter não quer abrir mão de princípios apenas para agradar a um dos lados e ganhar mais dinheiro. “A concorrência tá brava”, queixa-se, num fim de tarde em que os negócios andaram muito mal. Os demais vendedores cobram o dobro, mas entregam o produto mais desejado e seguem a máxima de que o cliente sempre tem razão: “Fora, Dilma”.

Seu Valter é um comerciante mais moderado, menos capitalismo selvagem. “Optei por um produto mais neutro.” Optou e se deu mal. Pelo menos, financeiramente: volta para casa carregado das faixinhas “Brasil, pátria amada” que oferecia a R$ 2,50 cada – as outras, antipetistas, não custavam menos de R$ 5. Não volta pra casa feliz, mas em sintonia com a consciência. “Teria de mudar todos os políticos. Não tem prova contra a Dilma.” Não deixa de ser curioso que uma mensagem tão verde-amarela encalhe num dia marcado por camisas canarinho, caras pintadas, bandeiras e hino nacionais a rodo.

Claramente, não era momento para ficar em cima do muro ou tecer algumas ponderações políticas. É um dia para mensagens explícitas, com grito bem claro e alvo definido. É também dia para algumas poucas certezas, muitas dúvidas, dezenas de questões. Uma perplexidade tão grande que desespera. O que está acontecendo? A data – 15 de março de 2015 – ainda será debatida e disputada durante um bom tempo, até que se desdobre e ganhe significados para os torcedores do Fla e do Flu. E também para o resto que não veste nenhuma camisa. Nem a verde-amarela que se imagina ser de todos os brasileiros.

Uma coisa é certa entre a multidão que compareceu à avenida Paulista: a saída imediata de Dilma Rousseff do Palácio do Planalto, melhor ainda se acompanhada pela extinção do PT e tudo que possa recordá-lo na face da Terra. Também parece ser clarividente que a maioria dos presentes é favorável ao impeachment como método para defenestrar a presidenta, apesar de parcela significativa ser entusiasta da “intervenção militar”, ora desavergonhadamente reconhecida como golpe, ora defendida como direito constitucional. O resto, uma enxurrada de cartazes, gritos e chiliques, é mote para debate.

Ainda não eram 15 horas e a avenida Paulista já estava cheia. É possível que certa “ansiedade revolucionária” tenha forçado paulistanos a sacrificarem o sacrossanto almoço de domingo por uma missão para eles ainda mais nobre que a família reunida em torno à mesa: “salvar o país”. Também é possível que a cobertura ao vivo de protestos que ocorriam logo pela manhã, em outras capitais, tenha empurrado para as ruas, antes do horário combinado, parte expressiva da população da maior cidade do país. Copacabana repleta de manifestantes às 11h deve ter ajudado. Imagens de cidadãos felizes envoltos nas cores nacionais, com crianças e policiais sorridentes, idem.

Nunca se viu a avenida Paulista tão cheia. Talvez nas paradas gays. Talvez no reveillón. Talvez em junho de 2013. Mas não dá para negar que havia um oceano de gente. Entrar na discussão sobre se eram 210 mil, como garante o DataFolha, recém alçado a oráculo da verdade pelos simpatizantes do governo, ou 1 milhão, como estima a Polícia Militar, é uma picuinha sem tamanho. Para efeitos comparativos com a marcha petista da sexta-feira, 13 de março, não é necessário recorrer às contagens do instituto ou da corporação. Se a ideia de alguém era medir forças, os que pediram “Fora, Dilma” foram incomparavelmente mais numerosos do que os que cobraram a permanência dela. Não estavam apenas na Paulista, mas também nas ruas adjacentes. Quem saísse alguns minutinhos da muvuca veria muitos verde-amarelos pela alameda Santos. E sabe-se lá onde mais.

A dinâmica da manifestação teve semelhanças com os dias finais das jornadas de junho, há dois anos, quando os movimentos de esquerda se viram rodeados de pessoas que jamais haviam sido vistas protestando. Gente andando pra lá e pra cá, alguns blocos coesos, gritarias localizadas, pluralidade de cartazes, desfile de reivindicações. Uma profusão de individualidades que, se se colocasse a dialogar entre si, não chegariam a um consenso sobre tantas “urgências” políticas, com exceção da mais urgente de todas: fim da corrupção e destituição de Dilma, que para eles parecem ser ingênuos sinônimos.

“Não se pode acabar com a corrupção sem acabar com o PT. O PT é a corrupção”, definiu um jovem rapaz que discursava no trio elétrico do Movimento Brasil Livre. “Vocês acham que a Dilma sabia? Sabia, né? E se ela sabe, é mais um crime que vai configurar o impeachment.”

Havia bastante sintonia entre quem falava do alto dos caminhões e as pessoas que estavam no asfalto, especialmente nas primeiras horas, em que a energia estava a mil e pequenas divergências podiam ser ignoradas em favor de um ideal unificador: “Fora PT” foi um dos gritos mais ecoados ao longo de todo o dia. A execução do hino nacional a torto e a direito, com todas as estrofes, até o fim, funcionou como outro elemento agregador aos manifestantes. “Esta é a música que nos unifica”, disse um dos oradores da tarde.

Muitas das ideias defendidas no domingo pareciam impensáveis três ou quatro anos atrás. A visão de que o PT é uma força a serviço do comunismo global, prestes a transformar o Brasil em uma extensão do eixo Cuba-Venezuela, já não é palavra de ordem de meia dúzia: arrasta milhares. “We won't be another Venezuela”, dizia um entre centenas de cartazes alusivos ao suposto perigo representado pela conexão entre Lula, Fidel Castro e Hugo Chávez. O Foro de São Paulo, articulação de partidos de esquerda latino-americanos, voltou a ser lembrado como tentáculo da ameaça soviética nestas bandas do mundo.

A ojeriza ao vermelho do PT, por outro lado, não representa exatamente uma novidade. “É uma cor tão bonita, pena que foi sequestrada pelos petralhas”, lamentava um rapaz do alto do carro de som. O sentimento ruim pelos tons escarlates e a interpretação sobre o que ela representa parecem seguir intactos desde a Guerra Fria para parte dos manifestantes do domingo. Novo é o fato de que multidões gritem ao mesmo tempo: “A nossa bandeira jamais será vermelha”. Eram muitos e, por muitas vezes, a demonstrar qual é a cor mais quente do momento político nacional.

VPR é, para a história brasileira, sigla que designa a Vanguarda Popular Revolucionária, grupo de resistência à ditadura que teve Dilma Rousseff como integrante. Para quem esteve na Paulista, porém, VPR é Vem pra Rua, um dos movimentos que coordenaram o ato com seu trio-elétrico-ostentação estacionado na transversal sobre quase toda a largura da avenida. A enorme carreta exibia uma faixa igualmente grande: “O Brasil não é do PT. É dos brasileiros. Fora Cuba. Fora Venezuela.” Enquanto isso, um rapaz vestido de Tio Sam, com cartola e bandeira dos Estados Unidos, desfilava debaixo de inofensivos gracejos.

Outros caminhões agitaram a tarde de protesto verde-amarela. Cada movimento tinha seu próprio aparelho de som e os manifestantes circulavam entre os veículos, paravam, ouviam e interagiam quando lhes agradava. Frequentemente se cantava o hino nacional. Com menos assiduidade, mas com fervor parecido, rezou-se o pai-nosso. Também houve músicas do Legião Urbana (“Que país é esse”), O Rappa (“Vem pra rua”), Raul Seixas (“Aluga-se”) e Gabriel Pensador (“Até quando”). Um jingle gravado especialmente para o momento, “Impeachment”, de uma dupla chamada Os Reaças, embalou a rebeldia dominical ao lado de uma versão antipetista de “Caminhando”, de Geraldo Vandré: “Dilma, vai embora, que o Brasil não quer você. Aproveita e leva o Lula e os vagabundos do PT.”

Entre preces e canções, apareciam palavras de ordem. Clássicos da esquerda latino-americana, como “O povo unido jamais será vencido”, foram ressignificados. Os manifestantes riram e saltaram ao bradar “Quem não pula é comunista”. Xingamentos machistas contra Dilma não deram o tom, ainda que tenham sido ouvidos aqui e acolá. “Eu vim de graça”, em referência à ajuda de custo paga pela Central Única dos Trabalhadores a parte dos manifestantes no protesto governista de sexta-feira, teve força. Alguns complementavam o grito com “E ainda paguei metrô”, em referência aos ônibus fretados pelos sindicalistas. “Lula, cachaceiro, devolve meu dinheiro” foi bastante entoado, inclusive por animados jovens que secavam no bico uma garrafa de catuaba, respingando as camisetas brancas com a inscrição “A culpa não é minha, votei no Aécio”.

A turma saudosa da ditadura se identificou rapidamente com os caminhões parados em frente ao parque Trianon. Eram dois e ostentavam faixas como “Intervenção militar já. O Brasil exige ordem e progresso” ou “Impeachment é coisa de otário, patriota mesmo exige intervenção militar”. Como nos anos 1960, bradaram contra os comunas. Um rapaz lembrou que na Coreia do Norte existe canibalismo. Outro xingou um tal “Che Pega na Vara”, em referência ao revolucionário argentino, a quem criticou por ser homofóbico.

Entediados com a falação, os partidários do golpe logo concordaram em deixar a companhia dos frouxos que pediam reforma política na Paulista e que, por vezes, vaiavam a estética milica, para caminhar até o quartel mais próximo, onde pediriam à caserna que resolvesse a questão. “Viva o Brasil. Militares, nós amamos vocês. Militares, nós precisamos de vocês. A nação está em perigo. Os militares são nossos anjos da guarda.”

Uma senhora, provavelmente com mais de 60 anos, brindava sorrisos angelicais para câmeras que a filmavam exibindo uma cartolina com os dizeres “SOS Militares”. Depois, dizia: “Quero que a Dilma vá para o inferno”. A frase, provavelmente, não coube no cartaz e precisou ser trazida verbalmente ao protesto. Minutos depois, ela subiria ao caminhão para confessar as saudades da ditadura. “O Brasil virou uma bagunça. Todo mundo só canta e dança funk. Brasília tem uma corja de vermelhinhos. Estou cansada disso. As crianças estão perdendo a referência de tudo, de pátria, de família, de Deus.”

Cuidado com as palavras, argumentos embasados e discursos elaborados, por sinal, não foram o forte da manifestação de domingo. Do chão da rua e especialmente do alto dos caminhões jorravam conclusões estapafúrdias e informações de fácil contestação. Uma avalanche de besteiras e mentiras que não são exclusividade dos antipetistas, mas que por eles foram carinhosamente cultivadas nas redes sociais até desabrocharem na avenida como flores rasteiras verde e amarelas.

Marcello Reis, fundador do grupo Revoltados Online, trajou terno para comandar os liderados. A elegância, disse, era porque minutos antes estava conversando com os Estados Unidos. “Acabei de receber a informação de que Washington vai provar que as urnas foram fraudadas”, bradou, para delírio geral, sem dar maiores detalhes sobre com que Estados Unidos falara e qual Washington provaria a fraude eleitoral. Logo depois, chorou de emoção, ladeado por faixas louvando o heroismo da Polícia Federal e do juiz Sérgio Moro, da Justiça Federal de Curitiba, responsável pelas investigações na Petrobras.

Tirando todas as faixas contra Lula, Dilma e o PT, o ministro José Antonio Dias Toffoli foi o homem mais citado da tarde – o que não significa que tenha sido um campeão de audiência, longe disso. Alguns manifestantes estavam indignados pelo fato de um ex-advogado-geral da União e ex-advogado de José Dirceu ser agora o relator do inquérito relativo à Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal. Se o protesto ocorresse quatro anos atrás, provavelmente haveria uma grita contra Joaquim Barbosa, relator do mensalão, hoje convertido em herói nacional e paladino da justiça.

Depois de Toffoli, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, foi lembrado em alguns cartazes e discursos. Uma cartolina dizia “Je Suis Janot”, em curiosa referência aos atentados terroristas que vitimaram cartunistas do jornal Charlie Hebdo na França. Parte dos manifestantes apoiam o chefe do Ministério Publico por ter oferecido denúncia contra vários políticos acusados de corrupção. Outros o odeiam por não ter incluído o nome de Dilma Rousseff na lista de suspeitos encaminhada ao Supremo. “A presidenta foi citada onze vezes nas delações”, indignaram-se. Menções aos presidentes da Câmara, Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros, réus em potencial da Lava Jato, foram ínfimas.

Se algum policial militar um dia sonhou em ser herói, esse sonho pôde ser realizado no domingo. Membros da tropa de choque nunca tiveram de concordar com tantos abraços e apertos de mão, nunca receberam tantos sorrisos e tapinhas nas costas durante um protesto. Nunca foram tão requisitados para fotos. A satisfação dos homens fardados era flagrante. Alguns se esforçavam para sustentar a cara fechada do ofício, mas, por mais que tentassem manter-se carrancudos, uma risadinha escapava pelo canto da boca. Carregaram crianças no colo. Posaram para selfies. Uma mulher fez questão de demonstrar excitação após sentir o toque da mão de um soldado sobre seu ombro nu. E ruidosos aplausos recebiam pequenas patrulhas que caminhavam pela multidão.

Frente a uma manifestação inédita, o governo ofereceu, mais uma vez, respostas convencionais. Os ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da Secretaria-Geral da Presidência da República, Miguel Rossetto, foram os escolhidos para dar as caras após o protesto, ainda no começo da noite de domingo. Garantiram que o Palácio do Planalto tinha plena consciência de quais vontades foram expressadas nas ruas e por quem. Voltaram a dizer que a contestação e as crises foram superadas várias vezes ao longo de doze anos. E prometeram, novamente, que Dilma apresentará nos próximos dias um extenso pacote anticorrupção, a exemplo do que foi dito na esteira das manifestações de junho de 2013 e durante todo o desenrolar do processo eleitoral.

Enquanto os ministros falavam na televisão, panelas voltavam a bater pelo país. E Aécio se deixava ser fotografado na sacada de seu apartamento, em Ipanema, no Rio de Janeiro, com uma camisa verde-amarelo. Mais tarde postou um vídeo no Facebook basicamente repisando as louvações utilizadas durante a campanha, interpretando que os brasileiros agora se reencontram com valores e virtudes. “Depois de refletir muito, eu optei por não estar nas ruas neste domingo, para deixar muito claro quem é o grande protagonista destas manifestações. E ele é o povo brasileiro, o povo cansado de tantos desmandos, cansado de tanta corrupção.”

Marina Silva, que antes dos protestos havia cobrado respeito à vitória eleitoral de Dilma Rousseff e adotado tom mais cauteloso, comparou o protesto ao espírito presente nas jornadas de junho, classificando-o como “livre e autoral”, mas desta vez com um objetivo claro de se colocar contra o governo e a corrupção. “O povo brasileiro exige uma posição da presidente da República em resposta aos seus justos e legítimos reclames. Esta, sim, é a hora de falar e dizer a verdade. Reconhecer os erros, assumir a responsabilidade por seus atos, propor soluções para os problemas, nada mais e nada menos que isso. Uma fala da presidente, não do marketing.”

Mas, quando veio, na tarde do dia seguinte, a fala da presidenta fez oferecer certezas de que a visão transmitida na véspera por seus ministros não era um caso à parte. Dilma repisou a necessidade de respeitar as urnas, a importância da democracia, a necessidade do combate à corrupção e da reforma política, a disposição de seu governo para o diálogo com quem queira dialogar. Não apresentou nenhuma diferença no tom usado nas últimas semanas, nos últimos meses, nos últimos anos, inclusive na acusação de que há na classe política partidários do “quanto pior, melhor”.

Reiterou o otimismo com uma suposta solidez democrática do país e um também suposto apego da população à construção do Estado democrático. Disse que governa para todos os brasileiros, independente de preferência partidária ou participação em manifestações contra o governo. E buscou a todo instante dizer que saberá reconhecer seus erros, sempre que indicados. “Ouvir é a palavra. Dialogar é a ação. O sentimento tem de ser de humildade e firmeza.” Desta vez, seu discurso não foi recebido com panelaços.

Depois de escutar a voz das ruas e dos palácios, é possível perceber que Dilma e seu Valter, o vendedor de fitinhas, têm pelo menos um ponto em comum: não querem ser Fla, nem Flu. Mas com uma diferença crucial. Enquanto a presidenta esconde as bandeiras vermelhas de quem a elegeu no ano passado e acena para seus detratores com as faixinhas verde-amarelas da conciliação nacional, o comerciante tem plena consciência de que a neutralidade não é boa em se tratando de ganhar a vida com política.

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João Peres, jornalista e editor do Nota de Rodapé. Tadeu Breda, jornalista, especial para o NR. Imagem: Paulo Pinto | Fotos Públicas

sexta-feira, 13 de março de 2015

A marvada pinga


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

Quando consideramos como era a vida das mulheres na nossa cultura algumas décadas atrás, com as restrições, o controle, as expectativas plenamente estereotipadas, a total falta de autonomia sobre a vida e o corpo, sempre encontramos algumas figuras que saltam aos olhos, por contrariar tudo isso e inventar seus próprios caminhos. A que tem ocupado meus pensamentos nos últimos dias é Inezita Barroso, recém-falecida, aos noventa anos.

Moça de fino trato, nascida e criada na capital paulista, recebeu da família conforto e educação. Mas, sabe-se lá por que diabos, e para nossa grande sorte, tinha os pés bem plantados na roça e uma curiosidade gigantesca sobre quem éramos os brasileiros, de onde vínhamos, o que nos comovia e nos motivava, o que nos falava ao coração, o que fazia de nós uma nação. Tornou-se cantora, violeira, atriz, folclorista e muitas outras coisas, vocações que identificou, perseguiu e realizou de forma primorosa até bem recentemente.

Enquanto ia armando um legado de pura sensibilidade e beleza, ela se divertia muito, coisa para a qual as moças, especialmente as paulistas quatrocentonas, estavam pouco autorizadas. Nas suas andanças, conheceu uma moda de viola que contava uma estória de cachaceiro. Ao mesmo tempo em que ouviu na canção um lamento nostálgico por um passado rural ingênuo, travestido de versos cômicos sobre o sujeito que evitava entornar o garrafão de uma só vez "porque acho feio", captou a oportunidade de desafiar os costumes com humor, gravando a moda no feminino (em 1954!) e emprestando seu vozeirão à mulher que ousa declarar que a "prosa de omi nunca dei valor" e que, depois de beber todas e criar confusão numa festa, termina faceira, encantada por chegar em casa "de braço dado com dois sordado, ai muito obrigado".

Quem não conhece a "Moda da Pinga"? Marca registrada de Inezita, para a qual as pessoas de boa família torciam o nariz, incapazes de se divertir com a brincadeira e, mais ainda, de perceber a sacada genial. Essa pequena joia atravessou gerações, sobrevivendo até mesmo ao vendaval politicamente correto.

Inezita foi puxar roda de viola nas galáxias. Ouvi dizer que tem feito duetos memoráveis com Cássia Eller e que, quando Chavela Vargas se junta a elas, rola também um "marvado tequila", nas ilustríssimas companhias de Frida Kahlo, Chiquinha Gonzaga, Elis Regina, Leila Diniz, Hilda Hilst e quem mais quiser aparecer.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 12 de março de 2015

Hora Extra

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


Santo Dias da Silva
Nascimento: 22 de fevereiro de 1942
Cidade natal: Terra Roxa - SP
Morte: 30 de outubro de 1979
Região final: bairro de Santo Amaro, cidade de São Paulo
Causa da morte: tiro

por Fernanda Pompeu    ilustrações Fernando Carvall

Muita gente valorosa lutou, se sacrificou ou foi sacrificada, durante os anos de arbítrio (1964 a 1985). Uma parte militou porque teve consciência das injustiças, desigualdades, amordaçamentos. Eram estudantes, intelectuais, políticos, gente da classe média esclarecida. Outra parte foi impulsionada pela necessidade de conquistar direitos trabalhistas e melhores salários. O pessoal que não “escolheu” lutar. Simplesmente era preciso para engendrar uma existência mais livre, mais confortável, mais segura. Santo Dias da Silva pertencia ao segundo grupo.

Primeiro filho de uma série de oito, ele conheceu as penúrias e asperezas seculares dos meeiros da terra. Ainda adolescente compreendeu que “sonho bom é aquele em que se sonha junto”. Lá foi o Santo participar das reivindicações dos trabalhadores rurais. Levou a primeira cassetada política: sua família foi expulsa da fazenda. Pais e irmãos viraram boias-frias, e o jovem Santo Dias tocou para São Paulo - na época apelidada de sul maravilha.

Iniciou-se no ofício de operário metalúrgico. Continuou sua história de guerreiro. Atuou nas Comunidades Eclesiais de Base - as combativas e famosas CEBs. Se meteu em todas as demandas - também de base - transportes, escolas, luz elétrica, água encanada, asfalto na rua, comida na panela. Tinha dentro dele a convicção que os direitos são batalhados, nunca vêm de mão beijada. Assim como acreditava que para vencer era necessário se organizar entre companheiros e companheiras.

Os sindicatos, sob a ditadura, eram muito limitados e ligados ao peleguismo. A brecha foi trabalhar nas Comissões de Fábrica. Uma reivindicação aqui, outra ali. Uma paralisação ali, outra aqui. Até que chegou o ano de 1979. Em agosto, foi assinada a Lei de Anistia. A ditadura era madeira oca prestes a desabar.

Os metalúrgicos da região do ABC, em São Paulo, articulavam greves significativas que ecoavam pelo país. Panfletagens, piquetes, comandos, comissões sindicais agitavam portas e chãos de fábricas. Santos Dias era um dos líderes do movimento.

No 30 de outubro de 1979, em frente à fábrica Sylvania, durante panfletagem e piquete, a polícia chegou conjugando os verbos da violência. A ordem era bater e prender. Mas um soldado da PM atirou nas costas de um dos grevistas.

Santo Dias da Silva caiu morto. Deixou a mulher Ana, sindicalista e feminista e dois filhos. Final da história para ele. Mas também mais uma pá de cal no regime militar. O assassinato do operário causou indignação nacional. Milhares de pessoas compareceram à missa de corpo presente na Catedral da Sé, conduzida por Dom Paulo Evaristo Arns. Na ocasião, o cardeal valente disse: “Quase nada está certo nesta cidade, enquanto houver duas medidas: uma para o patrão, outra para o operário”.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto. Fernando Carvall é o homem da arte.

terça-feira, 10 de março de 2015

Quem tem saudade da Oban?

por Tomas Chiaverini*

  – O que você acha? – o doutor Carlos, meu médico, perguntou uma semana atrás, enquanto eu sentava em frente à mesa ampla do consultório no bairro do Jardins.

Fiz cara de quem não entendeu e ele foi adiante.

– Não acha que a gente tem de pegar em armas? Você que trabalha na televisão, sabe das coisas de bastidores, não acha que a gente tem de soltar umas bombas em Brasília, arrancar esse povo de lá e começar tudo de novo?

Na hora confesso que fiquei um pouco sem ação. Desconfortável e sem jeito argumentei que não, que qualquer democracia é melhor do que qualquer ditadura, que os problemas devem ser resolvidos dentro das instituições estabelecidas.

O doutor Carlos rebateu dizendo que democracia é muito bom quando o povo é educado, mas que aqui não tem jeito, porque com os votos do Nordeste o PT vai ficar no poder pra sempre.

Ainda tentei argumentar mais um pouco, mas, como o doutor Carlos estava prestes a examinar partes um tanto delicadas, minha resposta foi curta e rasa. Agora que o exame já passou, tudo está bem e estou a uma distância segura do estimado discípulo de Hipócrates, vou tentar melhorar minha sustentação verbal.

Eu não só não acho que devemos pegar em armas como acho que, no nível atual da nossa democracia, pessoas educadas como o senhor, doutor Carlos, deviam ter vergonha de sequer aventar tal hipótese. Vou tentar simplificar, pra não ter perigo de o senhor não entender.

Na última vez que alguém resolveu pegar em armas pra resolver as coisas, o país viveu vinte dos mais negros anos de sua história. Médicos como o senhor, ou como meu avô, doutor Reinaldo Chiaverini, eram expulsos de universidade pelos simples fato de pensaram diferente do pessoal das armas. O pessoal das armas, claro, não gosta de pensar porque, por ser dono das armas, não precisa. Por isso mesmo odeia os que pensam, acha que são ameaças. Então, da última vez que estava no poder, o pessoal das armas saiu à caça dos que pensavam. Agora imagine um país em que só por pensar o senhor podia ser preso num lugar como, por exemplo, a Operação Bandeirantes, a Oban.

A Oban era um carcinoma típico da ditadura, um modelo logo replicado por todo o país. Era uma espécie de delegacia financiada com dinheiro de gente como o senhor, que achava o povo das armas legal, e comandada por um homem que gostava de judiar dos outros, o delegado Sergio Paranhos Fleury. Também tinha espaço para os sádicos do exército, mas o senhor, uma vez preso lá no meio, nunca saberia direito quem era o que.

Em lugares como a Oban, o povo das armas torturava. Hoje, a nossa Polícia ainda gosta de usar métodos parecidos e o pessoal do panelaço finge que não vê porque as vítimas, em geral, são pretas e pobres. Mas na época a coisa era mais profissional. Eles tinham aparelhos feitos especialmente para infligir dor. O mais famoso era o pau de arara, onde penduravam gente como se fossem pedaços de carne num açougue.

Mas tinha coisas mais elaboradas, como a “cadeira do dragão”, onde os presos eram sentados nus pra longas sessões de eletrochoques, ou a “coroa de cristo”, uma braçadeira de metal com parafusos que apertava lenta e implacavelmente o crânio dos interrogados, causando dores lancinantes. Ou ainda o “telefone”, um magneto ligado numa manivela pros torturadores irem aumentando pouco a pouco dose de energia dos choques, o que ajudava a desestabilizar os presos. Antecipar a dor provoca tanta agonia quanto a dor em si.

Eles gostavam especialmente de eletrocutar órgão genitais porque isso humilha, ajuda a implodir a autoestima. Eles realmente adoravam machucar essas partes mais queridas. Enfiavam arames pelas uretras dos presos e iam esquentando até ficar incandescente. Amputavam os bicos dos peitos com alicates para cortar metal.

As mulheres sofriam mais. Eram estupradas, não só por vários homens da lei, mas por cassetetes, porretes e barras de ferro. Eles gostavam muito também de torturar casais. Enquanto a mulher era estuprada, levava choques, safanões, pontapés, cusparadas e mijadas, o companheiro era obrigado a assistir. Depois invertiam as posições e o que tinha apanhado era obrigado a assistir, sabendo como ninguém a dor que seu ente querido estava experimentando.

Se o senhor acabasse preso, doutor Carlos, eles poderiam torturar o senhor por meses a fio. E nem o senhor nem ninguém poderia fazer algo pra mudar isso porque as instituições simplesmente não funcionavam. Eles se divertiam muito com tudo isso. Quando algum preso falava, tinham uma bandinha dos torturadores, que descia as escadas tocando marchinhas pra comemorar.

Como torturavam por muito tempo e com muita violência, eles tinha um médico que cuidava pros presos não morreram. Mesmo assim, alguns presos, que podiam muito bem ser inocentes porque nunca haviam sido julgados, acabavam morrendo. Nem por isso a diversão terminava.

Eles cortavam os corpos, quase sempre de jovens universitários, em vários pedaços pra enterrar em lugares diferentes. Mas guardavam as pontas dos dedos. Depois saíam com elas numa viatura descaracterizada, de preferência na hora do rush, e iam largando os pedacinhos de gente sobre o asfalto. Assim os outros carros passavam por cima e destruíam de vez as digitais.

Isso tudo, doutor Carlos, aconteceu na rua Tutóia, a menos de três quilômetros do consultório do senhor. Foi há pouco tempo, talvez na época que o senhor começasse a pensar na carreira de medicina.

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Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha no Nota de Rodapé.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Tarde na biblioteca

por Carlos Conte  ilustração Tiago Candido

 Duas mesas atrás de mim, o ex-sócio do meu tio lia o Estadão. Compenetrado, debruçado sobre o jornal, às vezes levantava a cabeça e, olhando pra frente, soltava algum comentário sobre as notícias, como se estivesse conversando com alguém, mas não tinha ninguém na cadeira ao lado. Na verdade, não tinha ninguém sempre. Esse cara já foi rico, chegou a ter motorista particular, vários imóveis pela cidade, mulheres lindas, mas não suportou a falência da empresa, hoje é viciado em analgésicos pesados e pode ser visto, pele e osso, vagando feito fantasma pelas ruas da Lapa ou falando sozinho enquanto lê o jornal numa biblioteca pública da Vila Romana.

Anos frequentando essa biblioteca e ainda não me acostumei com o bibliotecário. Ele tem uma deformidade no pescoço que me deixa intrigado. Não consigo pensar em outra coisa quando estou perto dele. Se ele passa pela minha mesa, meus olhos são instintivamente capturados pela imagem: parece que tem um canudo daqueles mais grossos de refrigerante implantado sob a pele, uma elevação tortuosa (a maquete de uma cordilheira) que vai do peito até o queixo, e enquanto admiro esse pescoço fico pensando que isso pode ser fruto de alguma intervenção cirúrgica, quem sabe até alienígena. Nunca se sabe. Além disso, o sujeito não me parece ser muito bom da cabeça, mas até aí estamos todos no mesmo barco, com a certeza de que ninguém se salva neste mundão cansado. Viver entre livros pode fazer mal à saúde, prova disso é o doidão do Piauí que vivia (ou ainda vive?) entrando e saindo da biblioteca da FFLCH.

Dia agitado na biblioteca da Rua Catão. Vários tipos interessantes. Quanto mais acabados, mais interessantes. E eu ali no meio, querendo silêncio, fingindo ser um normal (repito: estamos todos no mesmo barco, estamos todos desesperados). Outro dia bati boca com duas faxineiras que estavam conversando alto no corredor, e hoje penso que o errado ali talvez seja eu. Um amigo arquiteto me falou que o melhor jeito de se projetar uma praça é o seguinte: instale uma câmera escondida, veja de que forma as pessoas estão usando esse espaço – isso vai determinar onde ficarão as passarelas, os canteiros, os postes e todo o resto. No caso da biblioteca, vejo que seus antigos frequentadores e funcionários já deram utilidades para o espaço, que não necessariamente é o uso considerado correto ou normal para uma biblioteca.

Crianças com uniforme da escola fazem “trabalho” em grupo com canetas coloridas e cartolina (imitam aos berros a professora de ciências). Um mendigo dorme profundamente duas mesas ao lado, de vez em quando soltando um ronco grave e profundo, um ronco clássico, que me faz lembrar aqueles roncos do Leôncio do Pica-Pau. Um homem de terno e mãos bem peludas e suadas faz exercícios numa apostila de inglês básico: esse ainda não desistiu, não largou a rapadura. Na mesa de trás, novamente o ex-sócio do meu tio sussurra alguma coisa que eu não escuto. E tudo isso na mesma sala de leitura, aonde eu fui com o objetivo de escrever uma crônica sobre o carnaval sem saber que seria forçado a mudar de assunto na última hora. Escrever crônica tem dessas.

Como se não bastasse, entrou um grupo de quatro mulheres falando pelos cotovelos, como se entrassem na padaria ou na mercearia, mas logo descobri que a biblioteca para elas era uma espécie de sala de estar: estavam ali para descansar as pernas e bater papo. Sentaram-se em frente à estante de revistas, uma delas pegou uma Super Interessante e começou a folheá-la, molhando a ponta do dedo cada vez que ia virar uma página, até que alguma coisa na revista a fez arregalar os olhos:

– Olha só o que diz aqui: pedra nos rins pode ser maior que um caroço de maracujá!

– Isso eu já sabia – completou a mais velha, a voz da experiência. – O Artur, filho do vizinho de fundos do... – e aí ela foi emendando um monte de nomes e referências até que as outras se lembrassem – o Artur quase teve um troço quando viu o tamanho da pedra que tiraram dele. Do tamanho de uma azeitona!

As outras ficaram chocadas. Eu também. O bibliotecário se levantou e foi na direção da mesa delas. Estavam largadas sobre as cadeiras como se estivessem num sofá. Uma bandeja com café e sequilhos ia bem, pensei. Nem o trabalho de ciências do 6º ano era tão barulhento, por isso imaginei que o bibliotecário estava indo até elas pedir silêncio, afinal aquilo ainda era uma biblioteca.

Quando ele passou por mim, não pude resistir ao seu pescoço, irresistivelmente feio. Sentou-se numa cadeira vaga junto delas e falou:
– Eu conheço o Artur, Margarete! Ele mora no meu prédio.

Só eu não conhecia o Artur. Estava mesmo deslocado.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Tiago Candido, ilustrador, especial para o Nota de Rodapé

sexta-feira, 6 de março de 2015

Sem opção


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Ainda que eu preferisse me ocupar de lembrar das praças mais lindas que conheço - com destaque para a Tiradentes, em Ouro Preto - o calendário me empurra temas mais relevantes. E a cada março é preciso martelar nas iniquidades que afetam a vida das mulheres, pelo fato de serem mulheres. Um assunto para o ano todo, diga-se de passagem.

Faz poucos dias que Patricia Arquette, ao receber o Oscar de Atriz Coadjuvante de 2015, aproveitou seu palco global para reivindicar salários iguais para mulheres e homens. Cada vez que acontece algo assim, sinto uma vergonha danada da raça humana e suas renitentes negligências. Quinze anos passados da virada do milênio, e ainda é preciso que alguém use a cerimônia da entrega do Oscar para chamar a atenção dos senhores do mundo para causas que mereciam estar superadas há décadas. A da remuneração enviesada pelo gênero é apenas uma delas, e, por incrível que pareça, ainda suscita comentários saídos das cavernas pré-históricas.

Falando em trogloditas: um sujeitinho bem à toa como Alexandre Frota vai a um programa de TV noturno, do tipo baixaria explícita, e conta uma estória cabeluda sobre um suposto estupro que teria praticado contra uma mãe de santo. A plateia ri, o apresentador pede aplausos. A provocação é rasteira e violenta, com endereço certo, mas como ninguém que valha a pena assiste ao tal programa, menos ainda de madrugada, a repercussão é nula. Nova tentativa, em reprise, e nada. Passam-se vários meses e, numa segunda reprise, a provocação é captada, trazendo o dito cujo para o noticiário e as reações indignadas, finalmente! Ele vem, então, esclarecer que o relato é uma invenção, uma piada, para a qual se sente totalmente autorizado, no marco da liberdade de criação e expressão. Truculento e desafiador, em perfeita sintonia com este nosso estranho tempo de alminhas reviradas pelo avesso no despudorado strip tease planetário proporcionado pela internet.

Dá um cansaço profundo, que parece infinito. Mas é melhor respirar fundo e sacudir a poeira, porque desistir não é uma opção.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

terça-feira, 3 de março de 2015

Aos trinta, síndico, Carlos

por Ricardo Sangiovanni*

E eu que pensei que um dia viraria poeta, Carlos, acabei síndico de prédio. Aos trinta, Carlos: síndico de prédio!

Custou crer a meus amigos. Um perguntou se eu houvera faltado à reunião de condomínio e - oh, desgraça! - fora eleito à revelia. Não, não faltei. Outro riu-se indagando se acaso no prédio não havia algum aposentado no auge da carreira, mais disposto a abraçar o fardo. Não, não havia.

Aconteceu tem só três meses, Carlos, mas já pude confirmar o que previa: a vida de síndico empata mesmo a poesia. Porque a alma do poeta esmaece ante a burocracia mofada do cartório, que lhe obriga a ir três vezes ao maldito se não quiser pagar propina para registrar uma pinoia de documento. Alma de poeta não foi feita para pegar senha de banco em banco, Carlos, e ter que esperar uma vida para ouvir que não, obrigado, não temos interesse em abrir conta para prédio pequeno. Poeta não é para administrar caixinha, Carlos, nem para preencher tabela dinâmica, nem para gastar o latim renegociando os atrasados. Não é para se preocupar com vazamento de água, nem para descer de chinelo sábado à tarde para enquadrar o miserável do bêbado que meteu o carro na grade. O poeta morre se tiver que resolver todas as bagaças que ninguém mais quer resolver - e é aí, Carlos, que nascem o síndico e sua tragédia silenciosa.

Mas, Carlos, espera aí: os síndicos deste Brasil também têm direito a ser um pouco poetas, cara pálida. Então, como é que fica? Quem é que vai garantir o direito universal à poesia aos síndicos, e mais a todas as outras classes de pobres diabos iludidos de que há que se fazer, sem prevaricar, alguma coisa pelo que é coletivo? Até quando quem quiser ir além do próprio umbigo haverá de seguir pagando com a alma, que é o preço que cobram essa nossa falta de espírito público galopante, essa burocracia hedionda, esse tempo que já não dá para nada?

Também não precisa ter pena, Carlos - eu mesmo não tenho: ou o poeta em mim sobrevive ao síndico, ou melhor não haver diabo de poeta nenhum. A propósito, talvez o destino ainda me queira gauche: mês que vem começo, como você, a trabalhar em repartição. Valei-me, oh, Carlos! Valei-me!

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Ricardo Sangiovanni, jornalista, mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
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