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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 3 de março de 2015

Aos trinta, síndico, Carlos

por Ricardo Sangiovanni*

E eu que pensei que um dia viraria poeta, Carlos, acabei síndico de prédio. Aos trinta, Carlos: síndico de prédio!

Custou crer a meus amigos. Um perguntou se eu houvera faltado à reunião de condomínio e - oh, desgraça! - fora eleito à revelia. Não, não faltei. Outro riu-se indagando se acaso no prédio não havia algum aposentado no auge da carreira, mais disposto a abraçar o fardo. Não, não havia.

Aconteceu tem só três meses, Carlos, mas já pude confirmar o que previa: a vida de síndico empata mesmo a poesia. Porque a alma do poeta esmaece ante a burocracia mofada do cartório, que lhe obriga a ir três vezes ao maldito se não quiser pagar propina para registrar uma pinoia de documento. Alma de poeta não foi feita para pegar senha de banco em banco, Carlos, e ter que esperar uma vida para ouvir que não, obrigado, não temos interesse em abrir conta para prédio pequeno. Poeta não é para administrar caixinha, Carlos, nem para preencher tabela dinâmica, nem para gastar o latim renegociando os atrasados. Não é para se preocupar com vazamento de água, nem para descer de chinelo sábado à tarde para enquadrar o miserável do bêbado que meteu o carro na grade. O poeta morre se tiver que resolver todas as bagaças que ninguém mais quer resolver - e é aí, Carlos, que nascem o síndico e sua tragédia silenciosa.

Mas, Carlos, espera aí: os síndicos deste Brasil também têm direito a ser um pouco poetas, cara pálida. Então, como é que fica? Quem é que vai garantir o direito universal à poesia aos síndicos, e mais a todas as outras classes de pobres diabos iludidos de que há que se fazer, sem prevaricar, alguma coisa pelo que é coletivo? Até quando quem quiser ir além do próprio umbigo haverá de seguir pagando com a alma, que é o preço que cobram essa nossa falta de espírito público galopante, essa burocracia hedionda, esse tempo que já não dá para nada?

Também não precisa ter pena, Carlos - eu mesmo não tenho: ou o poeta em mim sobrevive ao síndico, ou melhor não haver diabo de poeta nenhum. A propósito, talvez o destino ainda me queira gauche: mês que vem começo, como você, a trabalhar em repartição. Valei-me, oh, Carlos! Valei-me!

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Ricardo Sangiovanni, jornalista, mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

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