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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 16 de junho de 2015

A música da floresta

por Fernando Evangelista*

 Quando Leopoldo me contou a história, não gostei. Pareceu-me tolinha.

– Autoajuda – eu disse.

Leopoldo, o filósofo do Rio Tavares, argumentou que aquilo era profundo como um oceano e que eu era um sujeito insensível de coração e fraquinho das ideias. Estávamos de papo no balcão do bar, lado a lado, mesas vazias atrás de nós.

– Boteco vazio é um troço triste – eu disse. E me corrigi: triste é essa história. Onde você leu?

– Uma antropóloga me contou. Ela viveu na África durante alguns anos.

– Antropóloga?

– De olhos verdes.

Pelo jeito como falou “olhos verdes”, detectei indícios de paixão.

A história é mais ou menos assim: Numa tribo do Zimbábue, quando uma mulher descobre que está grávida, vai para a floresta e, acompanhada de outras mulheres, reza e medita até que a “canção da criança” seja revelada. Leopoldo tentou me explicar como essa revelação se dava, mas não entendi.

Cantada pela comunidade em ocasiões especiais, a música irá acompanhar o novo ser durante toda a vida, da infância à velhice.

– Tem mais, tem mais – ele me disse, segurando no meu braço. – Com a música, aquele que estava perdido, engolido por tempestades, à deriva, tem a chance de se reencontrar e se redescobrir.

Bebeu a cerveja, limpou com as costas da mão a espuma que ficara no bigode, e concluiu:

– Se por acaso, algum dia, a pessoa se meter em alguma encrenca feia, se cometer algum erro grave ou algum delito, os integrantes da tribo se reúnem e, em círculo, cantam juntos a canção para que a pessoa recupere a lucidez e o bom-senso.

Estranho, esse filósofo. Ele sempre foi um homem cético, às vezes cínico, inimigo dos moralismos, do purismo, do romantismo, de todos os ismos, mas agora alguma coisa nele parecia diferente.

– Tu achas que isso ia dar certo aqui no Rio Tavares? – perguntei.

Ele sorriu. E, como um aluno aplicado, explicou que a autora da história era uma tal de Tolba Phanem e que a antropóloga havia lido, se emocionado, e decidido conhecer pessoalmente a tribo.

Em seguida Leopoldo pediu a conta, pagou a dele e a minha, fato inédito, olhou-me fundo e me disse sem medo de parecer piegas:

- Descobri a minha música, cara.

E foi se encontrar com a antropóloga de olhos verdes.

Dia desses, investiguei na internet essa historinha africana. Descobri que essa tal de Tolba Phanem, embora citada centenas de vezes, na verdade não existe. A história existe. A antropóloga também. E é bonitona, tem olhos verdes e, pelo que anda cochichando o povo do Rio Tavares, está perdidamente apaixonada pelo nosso Leopoldo, o sábio dos balcões.

Que os deuses da floresta protejam essa paixão.

* * * * * *

Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato. Foto de Michele Menegon.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que assim seja, salvem os filósofos e os apaixonados.
Carla

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