Queridas e queridos navegantes deste coletivo. Ano que vem está logo aí e vamos, a partir de hoje, tirar umas férias. Nos vemos a partir de janeiro, 14. A seguir uns desejos e reflexões de alguns de nossos colunistas. Boa leitura!
Ana Mendes
"As coisas que não existem são mais bonitas" (Manoel de Barros)
De dois anos pra cá, tenho enfeitado a casa pra virada do ano. Em 2011 recortei tecidos e fiz uma luminária. Esse ano, tô envolvida com velas e rendas. Acho graça. Quem vê a manufatura dos objetos, por dias a fio, me desreconhece. E eu atravesso um período de água. Caibo em qualquer destino. Fico acariciando pensamentos com formato de fita. Não é exatamente uma retrospectiva ou sequer uma projeção. Me enredo na ignorância gostosa sobre o que me reserva o ano seguinte, os dias seguintes, o resto da vida.
André Carvalho
Em 2012, o Nota de Rodapé deu samba. Com a coluna "Batucando", o ritmo mais quente do Brasil ganhou espaço. Com palavras minhas e traços de Kelvin Koubik, exaltamos baluartes como Carlos Cachaça, Ederaldo Gentil, Herivelto Martins e Paulinho da Viola. Agora, como um bom samba de Moreira da Silva, é hora do breque. Se a vida é uma música, ela é feita de sonhos - que são melodias -, e realizações - nossas rimas. Se nossa existência é uma canção, certamente é um samba. Voltamos em janeiro, com os tamborins, surdos e pandeiros numa batucada enfezada!
Fernanda Pompeu
Se você está lendo esta mensagem significa que afinal o mundo não se acabou. Ao contrário, ele segue. Ora firme, ora trêmulo, ora cor de sangue, ora cor do arco-íris. O mundo redondo como nossas cabeças. Prometo para minhas leitoras e leitores – e para meus ilustres colegas do Nota de Rodapé – caprichar (ainda mais) nas webcrônicas. Caprichar é escrever com sinceridade e carinho.
Fernando Evangelista
Queridos e queridas, leitores e leitoras, leitões e leitoas,
Se o mundo não acabar, desejo a todos um 2013 inspirado e
generoso, com muita sorte e muito amor.
Obrigado pelo carinho.
Beijos e abraços.
Izaías Almada
Em 13 de dezembro de 2013, o mundo vai acabar... Até lá tenham todos um feliz natal e um ótimo réveillon.
Júnia Puglia
Participar do NR e manter esta coluna tem sido uma bela e inesperada experiência, graças à equipe do NR e a vocês, leitores e leitoras que nos acompanham. Como esse mundão velho não vai acabar assim fácil, estarei de volta em 2013 pra retomar nossa conversa. Até logo, e tenham um ótimo começo de ano!
Marcos Grinspum Ferraz
2012 foi intenso! Fins e recomeços, voos e aterrisagens,
mortes e nascimentos. Mas se esse papo parece muito pessoal, digo isso porque
um dos voos mais emocionantes foi começar a escrever neste Nota de Rodapé. Um
desafio a cada mês e uma satisfação enorme de fazer parte desse time. 2013 será
também intenso, então, que venha nos dizer a que vem!
Moriti Neto
Ano bom este 2012. Para o NR, sem dúvida, excelente. Que em 2013, este maravilhoso coletivo continue a angariar leitores e colaboradores. E, principalmente, siga a encantar com belas crônicas e a serviço do jornalismo que intervém socialmente. Feliz ano novo!
Ricardo Viel
Há uma frase de Caetano que acho maravilhosa (se fosse de Paulo Coelho, provavelmente eu acharia besta) que diz assim: "É impressionante a força que as coisas têm quando elas têm queacontecer".
Tenho para mim que o Nota de Rodapé tem tanta força porque tinha que acontecer. E foi graças a um editor fantástico (como profissional e como pessoa) que esse projeto, assim meio sem plano, foi ganhando vida, leitores, colaboradores e foi se tornando um espaço diverso e divertido. Estamos – leitores e colaboradores – espalhados por esse mundão, mas há algo que nos une, e é isso que faz com que o NR seja um projeto que já atingiu seu objetivo: ser bonito, alegre e prazeroso para quem faz e lê. Desejo a todos nós, grupo que faz o NR, um 2013 cheio de força. O resto a gente constrói. Um abração. Feliz 2013
Ricardo Sangiovanni
Olha, se há algo que aprendo com esse ofício de jornalista - algo bonito, que rende mesmo uma mensagem de fim de ano - é o exercício do dom divino da apuração. Pois é dom que a graça de Deus (ou da Natureza) nos deu e dará sempre a todos - muito embora nós, oh povo de dura cerviz!, sigamos dele fazendo uso tão encurtado. Aprender, para depois ensinar ao mundo, a apurar (no sentido luso do “depurar”; evite o “apressar” castelhano) é a missão sagrada de todos nós jornalistas. Só apurando é que chegamos a desbastar intrigas, a desfazer mal-entendidos, a escapar de tolos embates maniqueus, a saber de fato quem disse o quê, sobre quem, por quê, quando e como. Só apurando é que aprendemos a aceitar que as relações entre as pessoas são complexas, que a vida não aceita dobrar-se às narrativas fáceis de nossa literatura ruim. Só apurando é que, no mínimo, evitamos dizer maiores bobagens. Portanto, caro leitor, aproveite as reuniões de final de ano para apurar o quanto puder de onde vem aquela rusga com o tio do interior, aquele cenho franzido para a colega de trabalho chata, aquela simpatia falsa com o amigo das antigas que trocou de carro antes de lhe pagar aquela dívida vencida. Apurar faz bem para o espírito. Feliz Natal, Feliz 2013.
Thiago Domenici
O NR virou, meio que sem querer, depois querendo muito, talvez por ter se tornado um vale encantado de bons amigos, de boas ideias, um refúgio pessoal e profissional. Sabe aquele lugar único que você vê algum sentido em trabalhar e também se divertir por algo que julga relevante?
É um pouco como me sinto em relação ao blog. Sem dúvida tem sido uma grande responsabilidade, sobretudo, um grande aprendizado.
2012 foi até agora o nosso melhor ano, ainda mais com o reconhecimento do internauta, que votou para estarmos entre os três melhores blogs profissionais do país na categoria notícias e cotidiano do prêmio TopBlog. E nesse esquema coletivo e colaborativo a gente cresce desde 2008; mais leitores e colunistas trazendo informação e conteúdo de qualidade.
A Fernanda Pompeu, na sua sabedoria, costuma brincar entre nós, que somos o “Barcelona dos Blogs”. Sem o tom pretensioso que isso possa causar em você, pra gente é gostoso pensar que somos ou que podemos jogar bonito sempre. É um estímulo, quer queiramos ou não, precisamos de estímulo pra ir mais adiante.
Às vezes, confesso, é difícil colocar tantas vontades em pratica. Falta braço, perna, tempo... Mas vamos em frente! Enquanto houver leitores, haverá NR. Espero voltar em 2013 mais satisfeito, de um jeito de não caber na gente, que transborda. Desejo a todos força e entusiasmo pelo que vale a pena. Meu pensamento bom, leve para esse fim de ano é: uma taça de vinho, pés relaxados, um sorriso, boas leituras e pensamentos soltos. Saravá!
sábado, 8 de dezembro de 2012
sexta-feira, 7 de dezembro de 2012
Bem guardados
A memória é uma coisa louca: ora generosa, ora torturante, surpreendente, desalentadora, ou tudo ao mesmo tempo. Tem gente que defende a “exatidão” daquilo que lembra, como sendo a verdade, como se a memória fosse desinteressada e pudesse congelar o que aconteceu de forma objetiva. Nada mais enganoso. Cada pessoa que tenha estado presente numa determinada situação terá a sua própria memória do fato, pessoal e intransferível, moldada pela história e pelas características individuais.
Começo assim porque quero falar da infância, assunto que vem me rondando há algum tempo. Quem me companha aqui já leu várias menções à maternidade e aos filhos. Somos todos filhos, todos fomos fetos e bebês, e todos tivemos todas as idades anteriores à que temos hoje. No entanto, é muito comum que, uma vez encerrada determinada etapa da vida, guardemos dela uma memória idealizada. Deixando de lado a vida intrauterina e os três primeiros anos, dos quais poucos de nós se lembram de forma consciente, há uma espécie de consenso de que na infância se concentram as lembranças mais felizes.
Desconfio muito desse artifício. Aprender quem somos, o lugar onde estamos e como devemos nos comportar para obter aceitação e afeto – essenciais, mas nem sempre disponíveis – implicam um processo sumamente complexo e doloroso, que cada um de nós enfrenta como pode. Somos civilizados, enquadrados, moldados para caber naquilo que se espera de cada um, conforme a miríade de variáveis envolvidas na equação individual. Então, não me venham com esse papo de que tudo era lindo e perfeito. Não era, mas pode ter se tornado, para ficar mais confortável na memória.
Sim, é verdade que entre tudo o que eu não entendia e ninguém explicava, porque não há como explicar tudo, e não há como se desviar da dor dos filhos – como um dia desses a Eliane Brum escreveu lindamente em sua coluna semanal – vivi momentos mágicos quando criança. Entre eles, estão: olhar para as letras e entender como usá-las para formar palavras e expressar qualquer coisa – um deslumbramento; a banda de melancia devorada no quintal, com o suco escorrendo pelos braços e pingando dos cotovelos no chão – um prazer quase selvagem de tão intenso; acordar do sono da tarde banhada em suor, por causa do remédio para gripe, e encontrar minha mãe ao lado e uma jarra de Mirinda sobre a mesa. Estão lá, bem guardados, e de vez em quando os trago de volta. Você com certeza os tem também.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. + Textos da autora.
Começo assim porque quero falar da infância, assunto que vem me rondando há algum tempo. Quem me companha aqui já leu várias menções à maternidade e aos filhos. Somos todos filhos, todos fomos fetos e bebês, e todos tivemos todas as idades anteriores à que temos hoje. No entanto, é muito comum que, uma vez encerrada determinada etapa da vida, guardemos dela uma memória idealizada. Deixando de lado a vida intrauterina e os três primeiros anos, dos quais poucos de nós se lembram de forma consciente, há uma espécie de consenso de que na infância se concentram as lembranças mais felizes.
Desconfio muito desse artifício. Aprender quem somos, o lugar onde estamos e como devemos nos comportar para obter aceitação e afeto – essenciais, mas nem sempre disponíveis – implicam um processo sumamente complexo e doloroso, que cada um de nós enfrenta como pode. Somos civilizados, enquadrados, moldados para caber naquilo que se espera de cada um, conforme a miríade de variáveis envolvidas na equação individual. Então, não me venham com esse papo de que tudo era lindo e perfeito. Não era, mas pode ter se tornado, para ficar mais confortável na memória.
Sim, é verdade que entre tudo o que eu não entendia e ninguém explicava, porque não há como explicar tudo, e não há como se desviar da dor dos filhos – como um dia desses a Eliane Brum escreveu lindamente em sua coluna semanal – vivi momentos mágicos quando criança. Entre eles, estão: olhar para as letras e entender como usá-las para formar palavras e expressar qualquer coisa – um deslumbramento; a banda de melancia devorada no quintal, com o suco escorrendo pelos braços e pingando dos cotovelos no chão – um prazer quase selvagem de tão intenso; acordar do sono da tarde banhada em suor, por causa do remédio para gripe, e encontrar minha mãe ao lado e uma jarra de Mirinda sobre a mesa. Estão lá, bem guardados, e de vez em quando os trago de volta. Você com certeza os tem também.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. + Textos da autora.
O inferno do abandono
Desabrigados pelas enchentes desde 2010, moradores de alojamento improvisado em Atibaia (SP) sofrem, seguidamente, com descaso do Poder Público
Pela quinta vez, o Nota de Rodapé chega ao Campo do Santa Clara, no bairro do Caetetuba, periferia de Atibaia. Nesta visita à cidade interiorana, localizada a 60 quilômetros de São Paulo, encontramos Elisa da Fonseca, Josefa Ferreira da Silva, Eliane Aparecida Narciso e Regiane Aparecida Narciso. Quatro mulheres e um mesmo lugar. Nomes e documentos diferentes, mas situação de abandono e preconceito comum desde as enchentes que atingiram o município nos verões de 2010 e 2011.
Como tantos outros, elas são ex-moradoras da rua dos Pires, na Vila São José, bairro próximo e uma das áreas mais pobres da região bragantina. Todas tiveram as casas demolidas e queimadas pela Prefeitura em janeiro de 2010. De acordo com os números oficiais, atualmente são 32 famílias habitando o outrora campo de futebol.
Ali os moradores já foram enlatados em contêineres e quase entraram num alojamento com o venenoso amianto sob as cabeças, como denunciou este NR.
Além disso, até hoje estão nas precárias casas de madeirite do abrigo improvisado, recebem valores exorbitantes nas cobranças de água e luz, e ainda convivem com a truculência policial.
Eliane, que mora com cinco filhos no local, tenta proteger a família tanto da influência do tráfico de drogas quanto da agressividade e discriminação da polícia. “Eu nem trabalho, pois não posso largar eles aqui, não tem nada pra fazer. Se deixar, eles vão se envolver mesmo. É o que tem pra eles”, diz.
Com o poder dos traficantes, ela pouco pode fazer para cuidar da família. Fora isso, tem que enfrentar ações policiais que criminalizam a população do lugar e já até “profetizaram” o destino de dois de seus filhos. “Um policial da Rota falou pra mim assim: ‘esse bebê que está no seu colo, daqui a alguns dias já vai estar no meio das drogas e a de 11 anos vai estar vendendo’, contou.
“A Polícia Militar, o pessoal da Rota, da Força Tática, quer que a gente denuncie traficante, mas eles vêm aqui pra prender um ou outro e vão embora. Nós vamos continuar morando. Como fica a segurança se a gente entrega alguém?”, pergunta Eliane.
Elisa também vivenciou a condição de criminalidade ser estendida para toda e qualquer pessoa que viva no campo. A unidade do alojamento em que mora com o marido e a filha foi invadida por uma operação policial. A suspeita da PM era que a casa fosse “ponto de drogas”. A moradora lembra que foi vigiada por 15 dias até que cinco viaturas a cercaram na porta de casa. “Pensaram que eu ia sair correndo”, explica a senhora, hoje aposentada e que tem sérios problemas na coluna.
Violência e precariedade
Josefa Ferreira da Silva, conhecida no bairro como Julia, instalou, na parte do abrigo em que mora com o marido, uma mercearia. “A gente precisa de renda. Dá pra ganhar uns trocados aqui, né?”, comenta. O pequeno comércio acabou por se tornar ponto de encontro, principalmente para as mulheres que têm a precaução de vigiar os filhos.
A partir da esquerda: Eliane, Elisa, “Julia” e Regiane (Foto de Mayra Bondança) |
Segundo Julia, o abrigo, com a forte presença do tráfico, violência da polícia e precariedade estrutural, é “um pedacinho do inferno”. “Ficamos no meio do fogo cruzado, pois as casas são procuradas por gente que se esconde da polícia. Aí a PM entra sem pedir licença, acusando que a gente protege bandido”.
Não bastasse o que se vive de dificuldades de habitação, já que as casas, entre outros problemas, têm telhados que se assemelham a papelão – não suportam chuva e esquentam absurdamente expostos ao sol – e infestações de ratos que abalam as estruturas frágeis das casas, fazendo ceder pisos e abrindo buracos nas paredes, o preconceito com a comunidade alojada no Campo do Santa Clara vai além da polícia.
Regiane Aparecida Narciso, irmã de Eliane, foi vítima de discriminação quando buscava trabalho em Atibaia. Candidata a uma vaga no Supermercado Extra, situado em área central, chegou antes da hora marcada para a entrevista. “Meia hora depois, chegou outra moça. A pessoa que ia atender a gente perguntou onde cada uma morava. Quando eu disse Campo do Santa Clara, chamaram a outra pra fazer entrevista antes de mim, no meu horário marcado. Depois, avisaram que a vaga tinha sido preenchida. Mal falaram comigo”, revela. Grávida do quinto filho, ela segue desempregada.
Os exemplos de acontecimentos como esse parecem comuns. A juventude do alojamento está entre os que mais sofrem. “Meu filho de 15 anos também já passou por isso. Os meninos procuram trabalho, mas o pessoal não emprega, fala que tem medo. Tem preconceito sim. Gente que poderia dar oportunidade diz que não ajuda porque não conhece o tipo de gente que mora aqui”, aponta Eliane.
Até quando?
Durante bastante tempo, os moradores escutaram da Prefeitura que o prazo para sair do alojamento seria de dois anos, a contar de fevereiro de 2010, quando a obra do alojamento se iniciou. Na época, uma placa colocada no campo pelo Poder Público mostrava o mês, mas indicava uma data inusitada.
Vista dos prédios do futuro conjunto habitacional (Foto de Moriti Neto) |
A preocupação de Eliane é baseada não só nos comentários. Numa visita ao futuro conjunto, é fácil notar que a construção está em estágio que necessita da finalização de diversos itens. Os sete prédios, com 24 apartamentos cada, estão erguidos, mas não há qualquer sinal do acabamento no trabalho dos poucos operários que tocam a obra. Água e esgoto ainda não têm as instalações concluídas. Tudo indica que os dias no “inferno” estão longe de terminar.
Moriti Neto, jornalista, mantém a coluna mensal Escarafunchar
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
Mania de presente
Algumas semanas atrás, sentado na plateia para assistir a um show de homenagem aos 30 anos do disco “Bloco na Rua”, de Sérgio Sampaio, ouvi um comentário rápido que muito me fez pensar. O DJ Zé Pedro, ali ao meu lado, disse: “Velho, as coisas estão acontecendo! A gente é que não dá conta de acompanhar tudo”. No palco estavam Juliano Gauche, Tatá Aeroplano e Gustavo Galo. Ao menos na minha interpretação, Zé Pedro se referia a uma efervescência cultural e criativa na cena musical do país, e ao tanto de bons discos e shows a que temos acesso diariamente. Que fique claro: isso não excluí, de modo algum, o tanto de coisas ruins que também proliferam por aí.
Chegando ao fim do ano, neste último texto de 2012 da coluna Verbo Sonoro, não me ocorreu assunto melhor para tratar do que essa efervescência musical, aproveitando para, junto a isso, combater qualquer mania de passado. Se vou, aqui, listar vários nomes que vem a cabeça, de gente que está produzindo música boa atualmente, este texto não se propõe a fazer nenhum tipo de ranking de “melhores discos do ano” – como é usual nesta época de Papai Noel. Primeiro, porque ninguém dá conta de acompanhar tudo o que surge na música brasileira, o que já torna falha qualquer lista que se proponha “total”. Mas mais do que isso, porque música não é competição, não é feita no ringue; não tem primeiro, segundo e terceiro lugares. Música agrega, soma e multiplica, mesmo que possam existir rivalidades (por vezes tolas) neste meio.
Este texto, de saída, corre riscos. Talvez soe muito otimista; talvez pareça uma “visão parcial” das coisas, já que conheço alguns dos músicos que cito. Bom, seja como for, garanto que não perdi o senso crítico! E, além disso, é importante ressaltar: o manual de redação do Nota de Rodapé (ainda não redigido no papel...) não nos define como um blog “neutro, plural e apartidário”. Sabe esse papo? Então, deixemos o (falso) discurso da neutralidade para a grande mídia...
Bom, voltando. As coisas estão acontecendo. As coisas estão sempre acontecendo, claro, e não estou querendo dizer que os tempos de hoje são melhores ou piores que os de ontem. E se isso parece óbvio, não é tanto assim. Me lembro de, na adolescência, ficar lamentando por não ter vivido nos anos 60, 70 e 80, para poder ter visto ao vivo todos aqueles músicos que eu ouvia aos 15 anos. Sim, eu ainda gostaria de tê-los visto, mas a verdade é que também me satisfaz, e muito, o que temos para ver e ouvir hoje. Como escreveu Gil em “Era Nova”: “Novo tempo sempre se inaugura (...) O tempo que você perdeu, perdeu, não volta”.
Entre shows e discos de trabalhos brasileiros recentes (de 2011 para cá), adentraram meus tímpanos neste ano, e agradaram muito, os sons de Karina Buhr, Céu, Pélico, Romulo Fróes, Passo Torto, Tatá Aeroplano, Bixiga 70, Tulipa Ruiz, Otto, Criolo, Emicida, Racionais, Metá Metá, Batuntã, Afroelectro, Peri Pane, Meno Del Picchia, Zafenate, Curumim, Gaby Amarantos, Los Sebosos Postizos, Herbert Vianna, Márcia Castro, Vintena Brasileira, Loungetude 46 e vários outros. Gente trabalhando com novas linguagens, se reapropriando de sonoridades ou dando continuidade a pesquisas antigas, mas sempre com ideias originais, conectadas aos nossos tempos de conectividade.
Um parênteses aqui. Eu diria também que, de diferentes modos, é gente com muita coisa a dizer, ao contrário do que escreveu Pedro Alexandre Sanches em um texto recente na revista Caros Amigos. Falando sobre a cidade de São Paulo ele argumentou que os músicos do lado de lá do rio (na maioria rappers de origem humilde) tem muito a dizer, enquanto as pessoas do lado de cá do rio não. Pois bem, esse assunto renderia páginas, mas só digo, de passagem, que ter algo a dizer não é apenas fazer música de protesto, nem tem relação direta com classe social – isso seria uma visão muito rasa de arte.
E nesse ponto lembro de algo que Tom Zé me disse em entrevista nesse ano, quando perguntado sobre suas parcerias com Mallu Magalhães, Pélico, Emicida e Rodrigo Amarante: “Digamos que, assim como eu vi o tropicalismo apontar setas para o futuro – não só na profissão de músico, mas em todas as áreas –, eu vejo nesses músicos novos que chegaram perto de mim uma grande capacidade de crítica, de visão. Acho que quando estivermos diante da terceira revolução industrial, com todos os problemas que devem vir, a gente vai precisar no Brasil que os artistas produzam massa mental para fazer frente à essa novidade. Aí, quando eu vejo esses artistas novos, eu penso: pode ter jeito, porque esses caras são de foder! Quer dizer, acho que a música dará sua contribuição.”
Pois bem, aproveitando a referência a Tom Zé, entramos aqui em um outro aspecto fundamental disso que chamo de “efervescência atual”: ela não se refere nem a um único estilo musical, nem a uma geração “etária” específica, mas ao momento em que nós vivemos em sentido mais amplo. Ter 20 ou 80 anos não inclui ou exclui ninguém. E os novos trabalhos de Tom Zé, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gal Costa, por exemplo, mostram que modernidade nada tem a ver com idade. São CDs que dão passos à frente e nos instigam a pensar o futuro da música popular brasileira.
Esses trabalhos mostram também como é grande o diálogo entre as gerações. Além de Tom Zé, com os participantes que citei, basta pensar que a banda de Caetano é formada por três jovens (dois deles do grupo Do Amor), que Gal gravou com Kassin e Moreno Veloso e que vários dos novos artistas tem trazido participações de músicos com longa estrada em seus discos e shows: Tulipa com Lulu Santos, Pitanga em Pé de Amora com Mônica Salmaso, Garotas Suecas com Elza Soares, Karina Buhr com Edgar Scandurra, Peri Pane com Alzira E., O Terno com Abujamra, Léo Cavalcanti com Arnaldo Antunes, Cinco à Seco com Lenine e Chico César etc., etc., etc.
Alguns podem argumentar que sempre foi assim, que as gerações sempre dialogaram. Certamente, mas parece que, de fato, há uma notável abertura neste momento por parte dos músicos consagrados para olhar para artistas novos e independentes. E no caso atual, não parece haver por trás disso nenhum grande interesse comercial, o que poderia explicar esses tipos de relação; pois não são gravadoras ou empresários incentivando as parcerias; a troca parece, mesmo, artística.
Então estamos no paraíso? Uhm, não é isso. Cada um que abra os ouvidos e tire suas conclusões. Só não deixem de abrir os ouvidos, isso é importante. Pois as coisas estão, sim, acontecendo. E, mesmo que seja melhor não ser “maníaco”, prefiro ter “mania” de presente do que de passado. É hoje que estamos vivendo. Acabo o texto, assim, citando algumas palavras do grande Belchior, consagradas na voz de Elis Regina: “Você pode até dizer que eu tô por fora, ou então que eu tô inventando. Mas é você que ama o passado e que não vê, é você que ama o passado e que não vê, que o novo sempre vem”. E a música brasileira nos dá boas perspectivas de futuro: que venha 2013!
Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura e música. Caco Bressane, arquiteto e ilustrador, também colunista do blog, especial para o texto
Chegando ao fim do ano, neste último texto de 2012 da coluna Verbo Sonoro, não me ocorreu assunto melhor para tratar do que essa efervescência musical, aproveitando para, junto a isso, combater qualquer mania de passado. Se vou, aqui, listar vários nomes que vem a cabeça, de gente que está produzindo música boa atualmente, este texto não se propõe a fazer nenhum tipo de ranking de “melhores discos do ano” – como é usual nesta época de Papai Noel. Primeiro, porque ninguém dá conta de acompanhar tudo o que surge na música brasileira, o que já torna falha qualquer lista que se proponha “total”. Mas mais do que isso, porque música não é competição, não é feita no ringue; não tem primeiro, segundo e terceiro lugares. Música agrega, soma e multiplica, mesmo que possam existir rivalidades (por vezes tolas) neste meio.
Este texto, de saída, corre riscos. Talvez soe muito otimista; talvez pareça uma “visão parcial” das coisas, já que conheço alguns dos músicos que cito. Bom, seja como for, garanto que não perdi o senso crítico! E, além disso, é importante ressaltar: o manual de redação do Nota de Rodapé (ainda não redigido no papel...) não nos define como um blog “neutro, plural e apartidário”. Sabe esse papo? Então, deixemos o (falso) discurso da neutralidade para a grande mídia...
Bom, voltando. As coisas estão acontecendo. As coisas estão sempre acontecendo, claro, e não estou querendo dizer que os tempos de hoje são melhores ou piores que os de ontem. E se isso parece óbvio, não é tanto assim. Me lembro de, na adolescência, ficar lamentando por não ter vivido nos anos 60, 70 e 80, para poder ter visto ao vivo todos aqueles músicos que eu ouvia aos 15 anos. Sim, eu ainda gostaria de tê-los visto, mas a verdade é que também me satisfaz, e muito, o que temos para ver e ouvir hoje. Como escreveu Gil em “Era Nova”: “Novo tempo sempre se inaugura (...) O tempo que você perdeu, perdeu, não volta”.
Entre shows e discos de trabalhos brasileiros recentes (de 2011 para cá), adentraram meus tímpanos neste ano, e agradaram muito, os sons de Karina Buhr, Céu, Pélico, Romulo Fróes, Passo Torto, Tatá Aeroplano, Bixiga 70, Tulipa Ruiz, Otto, Criolo, Emicida, Racionais, Metá Metá, Batuntã, Afroelectro, Peri Pane, Meno Del Picchia, Zafenate, Curumim, Gaby Amarantos, Los Sebosos Postizos, Herbert Vianna, Márcia Castro, Vintena Brasileira, Loungetude 46 e vários outros. Gente trabalhando com novas linguagens, se reapropriando de sonoridades ou dando continuidade a pesquisas antigas, mas sempre com ideias originais, conectadas aos nossos tempos de conectividade.
Então estamos no paraíso? Uhm, não é isso. Cada um que abra os ouvidos e tire suas conclusões. Só não deixem de abrir os ouvidos, isso é importante. Pois as coisas estão, sim, acontecendo.
Um parênteses aqui. Eu diria também que, de diferentes modos, é gente com muita coisa a dizer, ao contrário do que escreveu Pedro Alexandre Sanches em um texto recente na revista Caros Amigos. Falando sobre a cidade de São Paulo ele argumentou que os músicos do lado de lá do rio (na maioria rappers de origem humilde) tem muito a dizer, enquanto as pessoas do lado de cá do rio não. Pois bem, esse assunto renderia páginas, mas só digo, de passagem, que ter algo a dizer não é apenas fazer música de protesto, nem tem relação direta com classe social – isso seria uma visão muito rasa de arte.
E nesse ponto lembro de algo que Tom Zé me disse em entrevista nesse ano, quando perguntado sobre suas parcerias com Mallu Magalhães, Pélico, Emicida e Rodrigo Amarante: “Digamos que, assim como eu vi o tropicalismo apontar setas para o futuro – não só na profissão de músico, mas em todas as áreas –, eu vejo nesses músicos novos que chegaram perto de mim uma grande capacidade de crítica, de visão. Acho que quando estivermos diante da terceira revolução industrial, com todos os problemas que devem vir, a gente vai precisar no Brasil que os artistas produzam massa mental para fazer frente à essa novidade. Aí, quando eu vejo esses artistas novos, eu penso: pode ter jeito, porque esses caras são de foder! Quer dizer, acho que a música dará sua contribuição.”
Pois bem, aproveitando a referência a Tom Zé, entramos aqui em um outro aspecto fundamental disso que chamo de “efervescência atual”: ela não se refere nem a um único estilo musical, nem a uma geração “etária” específica, mas ao momento em que nós vivemos em sentido mais amplo. Ter 20 ou 80 anos não inclui ou exclui ninguém. E os novos trabalhos de Tom Zé, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gal Costa, por exemplo, mostram que modernidade nada tem a ver com idade. São CDs que dão passos à frente e nos instigam a pensar o futuro da música popular brasileira.
Esses trabalhos mostram também como é grande o diálogo entre as gerações. Além de Tom Zé, com os participantes que citei, basta pensar que a banda de Caetano é formada por três jovens (dois deles do grupo Do Amor), que Gal gravou com Kassin e Moreno Veloso e que vários dos novos artistas tem trazido participações de músicos com longa estrada em seus discos e shows: Tulipa com Lulu Santos, Pitanga em Pé de Amora com Mônica Salmaso, Garotas Suecas com Elza Soares, Karina Buhr com Edgar Scandurra, Peri Pane com Alzira E., O Terno com Abujamra, Léo Cavalcanti com Arnaldo Antunes, Cinco à Seco com Lenine e Chico César etc., etc., etc.
Alguns podem argumentar que sempre foi assim, que as gerações sempre dialogaram. Certamente, mas parece que, de fato, há uma notável abertura neste momento por parte dos músicos consagrados para olhar para artistas novos e independentes. E no caso atual, não parece haver por trás disso nenhum grande interesse comercial, o que poderia explicar esses tipos de relação; pois não são gravadoras ou empresários incentivando as parcerias; a troca parece, mesmo, artística.
Então estamos no paraíso? Uhm, não é isso. Cada um que abra os ouvidos e tire suas conclusões. Só não deixem de abrir os ouvidos, isso é importante. Pois as coisas estão, sim, acontecendo. E, mesmo que seja melhor não ser “maníaco”, prefiro ter “mania” de presente do que de passado. É hoje que estamos vivendo. Acabo o texto, assim, citando algumas palavras do grande Belchior, consagradas na voz de Elis Regina: “Você pode até dizer que eu tô por fora, ou então que eu tô inventando. Mas é você que ama o passado e que não vê, é você que ama o passado e que não vê, que o novo sempre vem”. E a música brasileira nos dá boas perspectivas de futuro: que venha 2013!
Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura e música. Caco Bressane, arquiteto e ilustrador, também colunista do blog, especial para o texto
Marcadores:
caco bressane,
chico buarque,
Cultura,
fim de ano,
ilustração,
karina burh,
Música,
Opinião,
pensata,
tom zé,
verbo sonoro
Cheiro de tinta
Não sou dada a futurologias. Gosto mesmo é do odor da naftalina, da cor sépia das fotografias, do papéis amarelados. Talvez pelo fato do passado deixar marcas, manchas, trilhas tangíveis, ao passo que o futuro é tão somente uma assombração de promessas.
Mas, apesar do amor pelas coisas pretéritas, não sou do tipo nostálgico. Não posto fotos do meu eu jovem no facebook. Também não cultivo saudades. De forma alguma acho que o tempo passado seja melhor ou superior ao tempo presente.
Ele foi apenas distinto. Hoje, pouco a pouco, vou me acostumando a ler jornais na tela. É muito dinâmico, pois foco na notícia do meu interesse e checo em veículos diferentes como ela foi trabalhada. Aqui vale um parênteses: vejo tudo muito parecido, nada autoral.
Dá a impressão que um jornalista copiou do outro, mudando ou acrescentando um detalhe embaixo, outro em cima. Tenho a sensação de que ninguém quer se comprometer. Como se fosse apenas um bater o ponto. Um se desfazer rapidamente de um encargo chato.
Creio que os jornalistas da web devem atentar para a relação íntima entre a qualidade e a diversidade no tom e no estilo. Basta conferir a história de dois gigantes de papel que morreram faz pouco tempo. Falo do carioca Jornal do Brasil (1891-2010) e do paulistano Jornal da Tarde (1966-2012).
O Jornal do Brasil, JB, teve longa vida de influência e importância. Foi referência como "jornal do país". Fez reformas editoriais e gráficas copiadas muitas vezes pela concorrência. Foi o primeiro a inventar um caderno B. Durante décadas serviu como contrapeso ao O Globo. Agora existe uma versão digital, mas na verdade só carrega o mesmo nome.
Já o Jornal da Tarde, JT, teve vida bem mais breve. No entanto foi brilhante na sua proposta inicial de inovação de texto e de paginação. Produziu capas memoráveis, legítimos "quadros" para, com gosto, a gente pendurar na parede. Ele apostava no visual bonito e leveza verbal muito antes da internet.
Na minha modesta opinião, creio que os dois começaram a morrer tempos antes das suas rotativas calarem. A agonia teve início quando cada um abriu mão da inovação e ousadia que, em boas fases, os caracterizaram. Os diferenciaram da maioria.
O leitor abandonou o Jornal do Brasil quando seus editores abriram mão ou perderam colunistas de primeira. Quando seu estilo passou a não cheirar e nem feder. Idem o leitor do Jornal da Tarde que não se sentiu disposto a acompanhar uma proposta cada vez mais ligeira e desimportante.
Uma bênção do passado é a de abrir os nossos olhos. Por exemplo, enxergar que o sucesso precisa ser renovado dia a dia. Não é tatuagem permanente, nem louro para se dormir. Os jornais digitais ainda não encontraram o ponto do doce.
Os webjornalistas precisam rapidamente ousar. Necessitam pôr tom e estilo em seus textos. Caso contrário, os leitores de notícias vão migrar em massa para os portais gerais e para o São Google. Nada é para amanhã.
fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.
quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
A janela
Há pouco para se ver da janela do meu quarto, além de um muro enfeitado com plantas trepadeiras, um obstáculo monótono que não me permite enxergar mais que umas janelas aqui e ali, quase sempre trancadas, o topo dos telhados das casas agrupadas e uma porção minúscula de céu. Muito pouco para minhas pretensões bisbilhoteiras. Sim, desde pequeno tenho verve fofoqueira; assumo. Como se morasse dentro de mim uma mulher velha e solitária, sentada há horas na varanda de casa em sua cadeira de vime, onde se dedica à eterna vocação de estar atenta a qualquer movimento da rua.
Por causa da visão desprivilegiada, uso os ouvidos. Pego no sono embalado pelo barulho da água corrente da criação de carpas do vizinho. Queria tanto um dia poder ver as carpas!
Foi numa dessas, mais exatamente na tarde do último feriado de 15 de novembro, enquanto trabalhava, que acompanhei a briga mais ferrada dos últimos tempos na Vila Romana, dessas que são lembradas pra sempre. Os gritos da mulher me arrepiavam. Incrível como grito de mulher assusta. Quando percebi que era mesmo coisa séria, larguei do computador e fui à janela para não correr o risco de perder nenhum detalhe. Mas essa briga de casal já tinha chegado no estágio em que o marido, um tanto arrependido por alguma bobagem que fez, tenta acalmar a esposa, que está em prantos, indignada, ameaçando romper definitivamente. Já o marido falava baixo. Vim saber, tempo depois, que era caso de agressão. No quarto da frente, o Cabelo, que mora comigo, também acompanhava a briga. Vimos de camarote a aproximação das viaturas, os dois na calçada; a mulher, mais calma, calada e descabelada; o marido, igual, com cara de bobo perdido, ouvia os policiais, balançando a cabeça pra cima e pra baixo, como um cachorro acompanhando o movimento dos talheres; pra cima e pra baixo; sim, senhor; até os policiais voltarem pras viaturas e sumirem, sob os olhares do povo janeleiro. Não ouvi falar mais no assunto. Deve ter ficado por isso mesmo.
Nesse mesmo feriado, que pra muita gente emendou com o do dia 20, teve mais duas brigas que eu acompanhei do meu quarto, enquanto corrigia envelopes intermináveis de provas da escola. Uma na casa do bebê recém-nascido: foi filho da puta pra tudo que é lado, uma gritaria terrível, portas batendo, criança chorando. A outra foi na casa do Alemão: que ele não pagava nenhuma conta, que não ajudava em nada, não trabalhava há quatro meses; e tudo isso ela gritava não para ele, mas para o bairro, porque tem certeza de que aqui no bairro o que não falta é gente querendo saber da vida dos outros; um escândalo.
Obrigadas a ficar em casa por causa do feriado, as famílias brigam. Lembrei-me de uma crônica em que eu narro a dificuldade que enfrentamos, eu mais quatro amigos, pra alugar esta casa. Os corretores queriam uma família, com marido, esposa, filhos. República?... Ah, república o proprietário não quer, porque tem as festas, o barulho...
Visitamos um prédio em que, logo no saguão, demos de cara com uma plaquinha, alertando: “Este é um prédio de família”. Nem subimos pra ver o apartamento. Famílias: briguem à vontade. Gritem. Xinguem. Só não chamem a polícia pra acabar com as nossas festas. Minha nova família, composta por cinco jovens, e uma infinidade de agregados, também tem direito de fazer o seu barulho de vez em quando.
Carlos Conte, sociólogo e cronista, estreia hoje a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto
Por causa da visão desprivilegiada, uso os ouvidos. Pego no sono embalado pelo barulho da água corrente da criação de carpas do vizinho. Queria tanto um dia poder ver as carpas!
Foi numa dessas, mais exatamente na tarde do último feriado de 15 de novembro, enquanto trabalhava, que acompanhei a briga mais ferrada dos últimos tempos na Vila Romana, dessas que são lembradas pra sempre. Os gritos da mulher me arrepiavam. Incrível como grito de mulher assusta. Quando percebi que era mesmo coisa séria, larguei do computador e fui à janela para não correr o risco de perder nenhum detalhe. Mas essa briga de casal já tinha chegado no estágio em que o marido, um tanto arrependido por alguma bobagem que fez, tenta acalmar a esposa, que está em prantos, indignada, ameaçando romper definitivamente. Já o marido falava baixo. Vim saber, tempo depois, que era caso de agressão. No quarto da frente, o Cabelo, que mora comigo, também acompanhava a briga. Vimos de camarote a aproximação das viaturas, os dois na calçada; a mulher, mais calma, calada e descabelada; o marido, igual, com cara de bobo perdido, ouvia os policiais, balançando a cabeça pra cima e pra baixo, como um cachorro acompanhando o movimento dos talheres; pra cima e pra baixo; sim, senhor; até os policiais voltarem pras viaturas e sumirem, sob os olhares do povo janeleiro. Não ouvi falar mais no assunto. Deve ter ficado por isso mesmo.
Nesse mesmo feriado, que pra muita gente emendou com o do dia 20, teve mais duas brigas que eu acompanhei do meu quarto, enquanto corrigia envelopes intermináveis de provas da escola. Uma na casa do bebê recém-nascido: foi filho da puta pra tudo que é lado, uma gritaria terrível, portas batendo, criança chorando. A outra foi na casa do Alemão: que ele não pagava nenhuma conta, que não ajudava em nada, não trabalhava há quatro meses; e tudo isso ela gritava não para ele, mas para o bairro, porque tem certeza de que aqui no bairro o que não falta é gente querendo saber da vida dos outros; um escândalo.
Obrigadas a ficar em casa por causa do feriado, as famílias brigam. Lembrei-me de uma crônica em que eu narro a dificuldade que enfrentamos, eu mais quatro amigos, pra alugar esta casa. Os corretores queriam uma família, com marido, esposa, filhos. República?... Ah, república o proprietário não quer, porque tem as festas, o barulho...
Visitamos um prédio em que, logo no saguão, demos de cara com uma plaquinha, alertando: “Este é um prédio de família”. Nem subimos pra ver o apartamento. Famílias: briguem à vontade. Gritem. Xinguem. Só não chamem a polícia pra acabar com as nossas festas. Minha nova família, composta por cinco jovens, e uma infinidade de agregados, também tem direito de fazer o seu barulho de vez em quando.
Carlos Conte, sociólogo e cronista, estreia hoje a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto
Marcadores:
agressão,
casa de loucos,
cronetas,
cronicas,
literatura marginal,
são paulo
O véio macho do baião
Rojão, como também era chamado o gênero Baião inventado por Luiz Gonzaga, foi um dos feitos que consagrou o músico Pernambucano como um dos principais expoentes da música popular brasileira. Recebendo suas devidas homenagens em todos os cantos do Brasil, Gonzagão completaria 100 anos de vida em 2012.
Trazendo sempre em suas composições a alegria e os valores de sua terra seca, tornou-se um dos responsáveis por levar um novo olhar para a música nordestina. Em 1947, apresentou para o país sua composição, ao lado de Humberto Teixeira, "Asa Branca", conhecida como um Hino do povo sofrido do nordeste. Hoje a música está difundida no mundo inteiro, inclusive com interpretações em japonês!
Esse Cabra para lá de arretado, extrapolou as fronteiras de seu território e abriu os caminhos para a música popular nordestina. Embora Seu Lua, como também era conhecido, não esteja por aqui de corpo presente, suas canções e composições seguem vivíssimas, promovendo tradicionalismo e cultura brasileira pelo mundão afora.
Assim o Véio Macho do Baião eterniza. Luiz Gonzaga do Nascimento, para sempre em nossa música.
Kelvin Koubik, artista visual e músico de Porto Alegre, colunista do NR. Veja + do autor
Trazendo sempre em suas composições a alegria e os valores de sua terra seca, tornou-se um dos responsáveis por levar um novo olhar para a música nordestina. Em 1947, apresentou para o país sua composição, ao lado de Humberto Teixeira, "Asa Branca", conhecida como um Hino do povo sofrido do nordeste. Hoje a música está difundida no mundo inteiro, inclusive com interpretações em japonês!
Esse Cabra para lá de arretado, extrapolou as fronteiras de seu território e abriu os caminhos para a música popular nordestina. Embora Seu Lua, como também era conhecido, não esteja por aqui de corpo presente, suas canções e composições seguem vivíssimas, promovendo tradicionalismo e cultura brasileira pelo mundão afora.
Assim o Véio Macho do Baião eterniza. Luiz Gonzaga do Nascimento, para sempre em nossa música.
Kelvin Koubik, artista visual e músico de Porto Alegre, colunista do NR. Veja + do autor
Marcadores:
baião,
brasil,
Cultura,
cultura popular,
desenho,
gonzagão,
homenagem,
ilustração,
kelvin Koubik,
Música
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
A singularidade dos desodorantes
Tenho problemas com desodorantes (como inclusive já disse aqui). Eles estragam a roupa, ou não funcionam, ou têm cheiro de banheiro de rodoviária, ou tudo isso junto. Aquela gente das propagandas até tenta me convencer. Jatos refrescantes de prazer, mulheres que caem do céu arrancando as próprias roupas, carros velozes, esportes radicais... Mas nunca conseguiram.
Pra piorar, a última marca que me arrisquei a usar tinha outro problema. Produzia uma névoa tóxica no banheiro que, quando inalada, me irritava a garganta. Então criei uma técnica. Prendia a respiração, passava o desodorante, saía do banheiro e rapidamente fechava a porta atrás de mim. Assim continuei a usar esse desodorante por algum tempo. Não apenas porque fosse menos pior, mas, talvez, porque essa última implicância me agradasse.
Pois é. Me agradava. E me agradava porque fazia eu me sentir único. Todo mundo gosta de se sentir único. Uma programação biológica, provavelmente. Nossas mães dando à luz um por vez, e nos mimando como se o mundo girasse em torno do nosso umbigo.
Depois a vida vai aos poucos acabando com essa ilusão. Ou melhor, vai tentando acabar. Porque no fundo, em algum lugar do inconsciente e por mais comum que seja seu emprego, seu carro, sua mulher, todo mundo se acha um pouquinho único. Não há como ser diferente. Estamos vendo o mundo através dos nossos olhos, a vida nos é narrada por nossa própria consciência.
E assim temos a ilusão de que o mundo está lá pra gente, como um cenário onde protagonizaremos nossas aventuras. Uma espécie de engano primordial, eterna fonte de guerras, desavenças, divórcios e afins. No fundo, a verdade é que somos sete bilhões de atores principais nos trombando no palco, enquanto a plateia segue vazia.
É uma dura realidade essa. Ser só mais uma abelha no enxame. Por isso minha birra com o desodorante me dava prazer e, mais do que isso, me orgulhava. Tanto que há algum tempo, numa roda de amigos, me peguei genialmente discorrendo sobre os defeitos de cada marca de desodorante, sobre minha pele sensível, e sobre como minha visão do mundo cosmético se diferenciava da dos demais mortais.
No fim, comecei a contar de como minha garganta se irritava com a nuvem tóxica de sais de alumínio e aromatizantes e estava prestes a falar da minha técnica quando o Luli tomou a palavra. Assim, como se nada fosse e de um só golpe destruiu minhas ilusões de singularidade:
“Sim, essa marca é horrível. Eu sempre prendo a respiração antes de passar, saio do banheiro e fecho rápido a porta.”
Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha
Pra piorar, a última marca que me arrisquei a usar tinha outro problema. Produzia uma névoa tóxica no banheiro que, quando inalada, me irritava a garganta. Então criei uma técnica. Prendia a respiração, passava o desodorante, saía do banheiro e rapidamente fechava a porta atrás de mim. Assim continuei a usar esse desodorante por algum tempo. Não apenas porque fosse menos pior, mas, talvez, porque essa última implicância me agradasse.
Pois é. Me agradava. E me agradava porque fazia eu me sentir único. Todo mundo gosta de se sentir único. Uma programação biológica, provavelmente. Nossas mães dando à luz um por vez, e nos mimando como se o mundo girasse em torno do nosso umbigo.
No fundo, a verdade é que somos sete bilhões de atores principais nos trombando no palco, enquanto a plateia segue vazia.
Depois a vida vai aos poucos acabando com essa ilusão. Ou melhor, vai tentando acabar. Porque no fundo, em algum lugar do inconsciente e por mais comum que seja seu emprego, seu carro, sua mulher, todo mundo se acha um pouquinho único. Não há como ser diferente. Estamos vendo o mundo através dos nossos olhos, a vida nos é narrada por nossa própria consciência.
E assim temos a ilusão de que o mundo está lá pra gente, como um cenário onde protagonizaremos nossas aventuras. Uma espécie de engano primordial, eterna fonte de guerras, desavenças, divórcios e afins. No fundo, a verdade é que somos sete bilhões de atores principais nos trombando no palco, enquanto a plateia segue vazia.
É uma dura realidade essa. Ser só mais uma abelha no enxame. Por isso minha birra com o desodorante me dava prazer e, mais do que isso, me orgulhava. Tanto que há algum tempo, numa roda de amigos, me peguei genialmente discorrendo sobre os defeitos de cada marca de desodorante, sobre minha pele sensível, e sobre como minha visão do mundo cosmético se diferenciava da dos demais mortais.
No fim, comecei a contar de como minha garganta se irritava com a nuvem tóxica de sais de alumínio e aromatizantes e estava prestes a falar da minha técnica quando o Luli tomou a palavra. Assim, como se nada fosse e de um só golpe destruiu minhas ilusões de singularidade:
“Sim, essa marca é horrível. Eu sempre prendo a respiração antes de passar, saio do banheiro e fecho rápido a porta.”
Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha
Marcadores:
abelha na orelha,
beleza,
cosméticos,
Cotidiano,
cronetas,
cronicas,
desodorantes
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
Sem dizer adeus
“La esperanza le pertenece a la vida, es la vida misma defendiéndose” (Julio Cortázar, en “Rayuela”)
Rubem Braga, em uma de suas tantas crônicas maravilhosas, daquelas adornadas de poesia e delicadeza, relata uma separação sem despedida, e a tristeza que ela trouxe.
“Talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão”, diz o mestre. E completa: “não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.”
Será permitido guardar uma “leve tristeza” e uma “lembrança boa”, anota o velho Braga. E amparados em ambas, digo eu, como se fossem duas muletas, há que se carregar, como for possível, o peso imenso da ausência.
Não há protocolo a ser seguido quando se trata de uma separação. Mesmo a ausência de uma despedida não garante que a dor seja menor; pode, sim, alimentar uma ilusão de que se deu porque assim quis a vida – o que, dependendo do ponto de vista, resulta menos ou mais triste.
Tenho pra mim que o pior que há numa despedida é que ela já leva consigo uma saudade – e uma dor – antecipadas. Nem foi dito o adeus e já estamos a pensar como sobreviver sem aquela(s) pessoa(s), sem aquele lugar – ou pior, sem ambos. E nesse momento parece ser que será impossível seguir a vida com esse vazio.
Pode ser tão dilacerante a ponto de levar-nos a pensar que melhor seria nunca ter acontecido. Mas perdoemos os magoados, porque eles não sabem o que dizem. Melhor seria, isso sim, nunca ter que dizer adeus. Porém, a eternidade não existe (e caso existisse seria uma chatice). Há que, se tragar demasiado rancor, acostumar-se com a ideia de o que foi já não será.
Por fim, talvez fosse melhor mesmo esquecer aquela última mensagem, aquele telefonema no meio da madrugada, como sugere o cronista dos cronistas. Assim fica a ilusão de que foi como em um baile de carnaval e se carrega a esperança de que um dia, talvez no próximo fevereiro, haja um reencontro e que, de mãos bem dadas para não se perder mais, se seguirá, em companhia, o cordão da vã alegria.
Ricardo Viel, jornalista, atualmente em Lisboa, Portugal, é dos primeiros colunistas deste NR e, a pedido, tira umas férias para voltar quando tiver o que dizer a seus leitores.
domingo, 2 de dezembro de 2012
Coisa Íntima # Santa Ceia
Série Coisa Íntima
Autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores. Participe, saiba +
Autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores. Participe, saiba +
clique para ampliar |
Autor: Luiz Achutti
Mais em http://www.achutti.com.br/
sábado, 1 de dezembro de 2012
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
Olha o fim do ano aí, gente!
Eu fico quietinha, tentando me fingir de morta, mas não funciona. Ele vem, vem mesmo, e acaba me achando assim, crente que estava invisível. O fim do ano, com pacote completo. Começa cada vez mais cedo, quando as lojas se enchem de luzinhas piscantes, botam “aquelas” músicas pra tocar o tempo todo (então é nataaaaaal...) e começam a se encher de gente. O resto, todo mundo sabe como é. Vontade de dormir hoje e acordar no 2 de janeiro – uma imagem escrita das mais surradas.
Este fim de ano está meio ameaçado por um fim de mundo anunciado. Já pensou? A festança organizada, geladeira abarrotada, presentes, árvore enfeitada, fantasia de papai noel comprada, amigo oculto esperando pra ser revelado e... caput! Acabou-se, instantaneamente, sem guerra nuclear e sem a revolta definitiva dos elementos naturais. Até que não seria mau. Não ficaria ninguém pra contar a história, nem Hollywood pra fazer o filme.
Na boa mesmo, não tenho nada contra festas, confraternizações e presentes, muito pelo contrário. Mas tem que dar liga, e liga é uma coisa que o calendário não consegue criar, porque a especialidade dele é impor, controlar e cobrar. A mistura de espírito festivo com obrigação desanda sempre, e deixa um gosto de “ufa, que bom que acabou”. Enquanto a gente é criança, tem a magia da inocência, que gera expectativa e surpresa, mesmo que repetida. Uma vez acionado o piloto automático, parece que se não houver festas, comilanças e presentes, tudo grande, animado e com muita gente, estaremos numa uma espécie de limbo pessoal, que, se assim for percebido, pode ter efeitos profundos. Sem falar na desigualdade, que ganha um ímpeto especial nesta época, quando corações momentaneamente amolecidos querem fazer parecer que somos mais iguais que durante o resto do ano.
Mas não, não quero azedar a festa de ninguém, nem a minha própria. É só uma tentativa de lembrar que a celebração das coisas que são importantes pra nós podia ser menos programada e mais sentida. Só isso. No mais, vem ni mim, fim de ano!
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. + Textos da autora.
Este fim de ano está meio ameaçado por um fim de mundo anunciado. Já pensou? A festança organizada, geladeira abarrotada, presentes, árvore enfeitada, fantasia de papai noel comprada, amigo oculto esperando pra ser revelado e... caput! Acabou-se, instantaneamente, sem guerra nuclear e sem a revolta definitiva dos elementos naturais. Até que não seria mau. Não ficaria ninguém pra contar a história, nem Hollywood pra fazer o filme.
Na boa mesmo, não tenho nada contra festas, confraternizações e presentes, muito pelo contrário. Mas tem que dar liga, e liga é uma coisa que o calendário não consegue criar, porque a especialidade dele é impor, controlar e cobrar. A mistura de espírito festivo com obrigação desanda sempre, e deixa um gosto de “ufa, que bom que acabou”. Enquanto a gente é criança, tem a magia da inocência, que gera expectativa e surpresa, mesmo que repetida. Uma vez acionado o piloto automático, parece que se não houver festas, comilanças e presentes, tudo grande, animado e com muita gente, estaremos numa uma espécie de limbo pessoal, que, se assim for percebido, pode ter efeitos profundos. Sem falar na desigualdade, que ganha um ímpeto especial nesta época, quando corações momentaneamente amolecidos querem fazer parecer que somos mais iguais que durante o resto do ano.
Mas não, não quero azedar a festa de ninguém, nem a minha própria. É só uma tentativa de lembrar que a celebração das coisas que são importantes pra nós podia ser menos programada e mais sentida. Só isso. No mais, vem ni mim, fim de ano!
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. + Textos da autora.
quinta-feira, 29 de novembro de 2012
Vlado em 4 atos
1.
Há 13.505 dias o mundo era outro. Por exemplo, as Bienais de São Paulo ainda eram importantes. No 25 de outubro de 1975, um sábado, eu fui até o Ibirapuera. Na época, quando São Google nem sonhava em nascer, eu tinha uma reverência ao evento Bienal. De fato, na de 1975, foi possível ver alguma coisa da novidadeira instalação de vídeo-arte e entrar numa maloca indígena – reproduzida em tamanho natural.
Tenho a impressão que chovia. Digo impressão, pois 37 anos são 37 anos. A tinta da memória, igual a das canetas sem uso, também seca. Mas eu guardei esse dia não por causa da Bienal, mas por conta do que soube ao cair da tarde. Cheguei em casa e meu pai, entre solene e preocupado, disse: "Olha, mataram um jornalista da TV Cultura. Vai ter mobilização."
2.
Domingo. Acho que continuava chovendo. Lembro que meu pai e eu fomos para o velório do jornalista no Hospital Albert Einstein. Hospital tão afamado quanto hoje é o Sírio-Libanês. O clima, a indignação das pessoas nem preciso descrever. Havia também o danado medo. Entre os presentes circulavam homens de terno e gravata fotografando. "Agentes do Dops" – sussurrávamos.
Mas ninguém arredou pé. Sabíamos que tínhamos que ficar onde estávamos. Entre os ilustres, o arcebispo Dom Paulo Arns e o senador Franco Montoro. Até aquele dia eu não fazia ideia de quem era Vladimir Herzog. Mas sabia que a ditadura torturava e matava muito gente. E aquele cara, estendido no caixão, não havia se suicidado.
3.
O enterro foi no Cemitério Israelita do Butantã. Mais longe do que é hoje. Lembro de uma estradinha de terra (será?). E, é claro, da grande comoção. Eu assisti a tudo de um lugar alto. Choros. Rápidos e compungidos discursos da Ruth Escobar (ninguém fala mais dela) e de Audálio Dantas – então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. A sensação era que desta vez haveria uma resposta. Acho que isso estava escrito na cara de todo mundo: "Não vamos deixar barato."
4.
No 31 de outubro, ocorreu a grande concentração na Praça da Sé. Desafiando o aparato repressivo, e graças ao trabalho dos estudantes da USP, PUC, GV e do Sindicato dos Jornalistas, mais de cinco mil pessoas estavam em frente à Catedral da Sé. Lá dentro se desenrolava uma missa-ato ecumênico (ou quase isso, pois não convidaram uma mãe de santo). Representando os católicos, os corajosos dons Paulo Evaristo Arns e Helder Câmera. Os judeus contaram com o rabino Henry Sobel. Em nome dos protestantes, o pastor James Wrigth.
Mas tudo isso foi muito mais. Hoje sabemos que o protesto contra o assassinato do cidadão Vlado, 38 anos, foi um punhal certeiro no coração da ditadura militar. Toda tirania, minhas amigas e amigos, um dia tem seu fim.
fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.
Há 13.505 dias o mundo era outro. Por exemplo, as Bienais de São Paulo ainda eram importantes. No 25 de outubro de 1975, um sábado, eu fui até o Ibirapuera. Na época, quando São Google nem sonhava em nascer, eu tinha uma reverência ao evento Bienal. De fato, na de 1975, foi possível ver alguma coisa da novidadeira instalação de vídeo-arte e entrar numa maloca indígena – reproduzida em tamanho natural.
Tenho a impressão que chovia. Digo impressão, pois 37 anos são 37 anos. A tinta da memória, igual a das canetas sem uso, também seca. Mas eu guardei esse dia não por causa da Bienal, mas por conta do que soube ao cair da tarde. Cheguei em casa e meu pai, entre solene e preocupado, disse: "Olha, mataram um jornalista da TV Cultura. Vai ter mobilização."
2.
Domingo. Acho que continuava chovendo. Lembro que meu pai e eu fomos para o velório do jornalista no Hospital Albert Einstein. Hospital tão afamado quanto hoje é o Sírio-Libanês. O clima, a indignação das pessoas nem preciso descrever. Havia também o danado medo. Entre os presentes circulavam homens de terno e gravata fotografando. "Agentes do Dops" – sussurrávamos.
Mas ninguém arredou pé. Sabíamos que tínhamos que ficar onde estávamos. Entre os ilustres, o arcebispo Dom Paulo Arns e o senador Franco Montoro. Até aquele dia eu não fazia ideia de quem era Vladimir Herzog. Mas sabia que a ditadura torturava e matava muito gente. E aquele cara, estendido no caixão, não havia se suicidado.
3.
O enterro foi no Cemitério Israelita do Butantã. Mais longe do que é hoje. Lembro de uma estradinha de terra (será?). E, é claro, da grande comoção. Eu assisti a tudo de um lugar alto. Choros. Rápidos e compungidos discursos da Ruth Escobar (ninguém fala mais dela) e de Audálio Dantas – então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. A sensação era que desta vez haveria uma resposta. Acho que isso estava escrito na cara de todo mundo: "Não vamos deixar barato."
4.
No 31 de outubro, ocorreu a grande concentração na Praça da Sé. Desafiando o aparato repressivo, e graças ao trabalho dos estudantes da USP, PUC, GV e do Sindicato dos Jornalistas, mais de cinco mil pessoas estavam em frente à Catedral da Sé. Lá dentro se desenrolava uma missa-ato ecumênico (ou quase isso, pois não convidaram uma mãe de santo). Representando os católicos, os corajosos dons Paulo Evaristo Arns e Helder Câmera. Os judeus contaram com o rabino Henry Sobel. Em nome dos protestantes, o pastor James Wrigth.
Mas tudo isso foi muito mais. Hoje sabemos que o protesto contra o assassinato do cidadão Vlado, 38 anos, foi um punhal certeiro no coração da ditadura militar. Toda tirania, minhas amigas e amigos, um dia tem seu fim.
fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.
Guerra virtual, parte 2
Nessa entrevista da série "O mundo Amanhã", o fundador do WikiLeaks, Julian Assange segue o papo da semana passada com seus companheiros de armas, os criptopunks, virtuosos cyberativistas que lutam pela paz na internet. O debate é sobre a arquitetura da internet, a liberdade de expressão e as consequências da luta por novas políticas na web
“ O nono episódio da série World Tomorrow continua com os Criptopunks, ativistas da liberdade de informação na internet, Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn, Jeremie Zimmerman e, claro, Julian Assange, no papel de advogado do diabo. “Trole-nos, mestre troll”, brinca Jacob.
Na luta pela liberdade na web, os Criptopunks lançam algumas luzes sobre a guerra virtual entre o compartilhamento livre e o roubo, o poder dos governos em intervir versus a liberdade de expressão – e as consequências dessa batalha.
“A arquitetura é a verdade. E isso vale para a internet em relação às comunicações. Os chamados ‘sistemas legais de interceptação’, que são só uma forma branda de dizer ‘espionar pessoas’. Certo?”, cutuca Jacob. “Você apenas coloca “legal” após qualquer coisa porque quem está fazendo é o Estado. Mas na verdade é a arquitetura do Estado que o permite fazer isso, no fim das contas. É a arquitetura das leis e a arquitetura da tecnologia assim como a arquitetura dos sistemas financeiros”.
O debate segue apoiado nas possíveis perspectivas para o futuro. Para os Criptopunks, as políticas devem se pautar na sociedade e nas mudanças que seguem com ela, não o contrário.
“Temos a impressão, com a batalha dos direitos autorais, de que os legisladores tentam fazer com que toda a sociedade mude para se adaptar ao esquema que é definido por Hollywood. Esta não é a forma de se fazer boas políticas. Uma boa política observa o mundo e se adapta a ele, de modo a corrigir o que é errado e permitir o que é bom”, diz Jeremie.
Mas a busca por novas políticas e uma nova arquitetura tem seu preço. Jacob, detido várias vezes em aeroportos americanos, conta: “Eles disseram que eu sei por que isso ocorre. Depende de quando, eles sempre me dão respostas diferentes. Mas geralmente dão uma resposta, que é a mesma em todas instâncias: ‘porque nós podemos’”.
E provoca: “A censura e vigilância não são problemas de ‘outros lugares’. As pessoas no Ocidente adoram falar sobre como iranianos e chineses e norte-coreanos precisam de anonimato, de liberdade, de todas essas coisas, mas nós não as temos aqui”.
O material foi produzido pelo WikiLeaks em parceria com o canal RT, da Rússia e a publicação e adaptação no Brasil é de responsabilidade da Agência Pública.
O Nota de Rodapé é um dos sites/blogs parceiros da Pública na reprodução dessas entrevistas, 12 no total, que vão ao ar todas às quartas-feiras, às 18h.
Assista a seguir a entrevista em vídeo e com legendas em português ou clique aqui para baixar o texto completo da conversa.
“ O nono episódio da série World Tomorrow continua com os Criptopunks, ativistas da liberdade de informação na internet, Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn, Jeremie Zimmerman e, claro, Julian Assange, no papel de advogado do diabo. “Trole-nos, mestre troll”, brinca Jacob.
Na luta pela liberdade na web, os Criptopunks lançam algumas luzes sobre a guerra virtual entre o compartilhamento livre e o roubo, o poder dos governos em intervir versus a liberdade de expressão – e as consequências dessa batalha.
“A arquitetura é a verdade. E isso vale para a internet em relação às comunicações. Os chamados ‘sistemas legais de interceptação’, que são só uma forma branda de dizer ‘espionar pessoas’. Certo?”, cutuca Jacob. “Você apenas coloca “legal” após qualquer coisa porque quem está fazendo é o Estado. Mas na verdade é a arquitetura do Estado que o permite fazer isso, no fim das contas. É a arquitetura das leis e a arquitetura da tecnologia assim como a arquitetura dos sistemas financeiros”.
O debate segue apoiado nas possíveis perspectivas para o futuro. Para os Criptopunks, as políticas devem se pautar na sociedade e nas mudanças que seguem com ela, não o contrário.
“Temos a impressão, com a batalha dos direitos autorais, de que os legisladores tentam fazer com que toda a sociedade mude para se adaptar ao esquema que é definido por Hollywood. Esta não é a forma de se fazer boas políticas. Uma boa política observa o mundo e se adapta a ele, de modo a corrigir o que é errado e permitir o que é bom”, diz Jeremie.
Mas a busca por novas políticas e uma nova arquitetura tem seu preço. Jacob, detido várias vezes em aeroportos americanos, conta: “Eles disseram que eu sei por que isso ocorre. Depende de quando, eles sempre me dão respostas diferentes. Mas geralmente dão uma resposta, que é a mesma em todas instâncias: ‘porque nós podemos’”.
E provoca: “A censura e vigilância não são problemas de ‘outros lugares’. As pessoas no Ocidente adoram falar sobre como iranianos e chineses e norte-coreanos precisam de anonimato, de liberdade, de todas essas coisas, mas nós não as temos aqui”.
O material foi produzido pelo WikiLeaks em parceria com o canal RT, da Rússia e a publicação e adaptação no Brasil é de responsabilidade da Agência Pública.
O Nota de Rodapé é um dos sites/blogs parceiros da Pública na reprodução dessas entrevistas, 12 no total, que vão ao ar todas às quartas-feiras, às 18h.
Assista a seguir a entrevista em vídeo e com legendas em português ou clique aqui para baixar o texto completo da conversa.
Marcadores:
Entrevista,
guerra virtual,
Internacional,
Internet,
julian assange,
mundo amanhã,
wikileaks
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
Maré de dentro
Fábio Caffé, AF Rodrigues, Elisangela Leite e Ratão Diniz. (Foto de Edmilson de Lima) |
Sob esse estigma, reforçados dia e noite nos noticiários, os moradores das favelas cariocas trabalham, estudam, festejam, brincam, amam. Mesmo quando a mídia publica uma notícia positiva sobre a favela ou algum morador, a exaltação normalmente reforça os conceitos pré-concebidos sobre quem vive no território geográfico-social da periferia: “ele não era bandido, mas um trabalhador”, surpreende-se o repórter ao falar sobre a chacina que aconteceu na Baixada Fluminense em 2011.
O lamento do jornalista – publicado no Observatório de Favelas – sobre a morte de um inocente não destaca a violação dos direitos dos moradores, a importância em reduzir a violência policial ou mesmo sugere a aplicação de políticas públicas em prol da valorização da vida. A mídia, por sua vez, sempre espanta-se ao constatar que um morador não tinha passagem pela polícia. Por quê? Do ponto de vista da grande mídia a culpa antecede o crime nas favelas brasileiras.
Na contramão das manchetes diárias o fotógrafo documental João Roberto Ripper afirma que “99% da população das favelas nada tem a ver com o tráfico”. Ele é um dos idealizadores do projeto que em 2013 irá comemorar nove anos de existência: a Escola de Fotógrafos Populares.
Fundada em 2004 e aliada ao Observatório de Favelas, a Escola já formou mais de 200 fotógrafos. Os alunos, que cursam nove meses de disciplinas de comunicação e fotografia, são prioritariamente moradores das comunidades que compõem o Complexo da Maré.
Empunhando câmeras fotográficas, eles clicam uma favela rica em belezas. Se posicionam ao lado dos moradores e mostram o lugar sob um olhar cúmplice. São imagens de afeto e carinho, numa constante descoberta sobre a comunidade em que vivem. Estas fotografias resignificam a favela e renovam o repertório de imagens que se tem sobre ela, retirando assim, nossos olhares da pobreza da informação única.
Preocupados em escoar essa produção fotográfica e continuar acompanhando os ex-alunos da Escola, criou-se o banco de imagens e agência-escola Imagens do Povo. Nesta plataforma online é possível comprar fotos e serviços – composto por seis mil imagens e mais de trinta profissionais de vasto currículo, com exposições e prêmios no exterior, o grupo publicou o primeiro livro neste ano, disponível gratuitamente para download na internet.
O bem-querer de João
Além de mestre e um dos fundadores da Escola de Fotógrafos Populares, João Roberto Ripper é visto também como orquestrador do olhar sob a favela a partir de um conceito que cunhou com a prática: o bem-querer. Conhecido por aliar seu trabalho fotográfico à luta pelos direitos humanos, Ripper busca retratar a beleza das relações mesmo quando ela está submetida a grande injustiça social. Ele mostra a multiplicidade e a riqueza das histórias, saberes e fazeres, contribuindo para a difusão de uma imagem que valorize os grupos com os quais trabalha. Para ele, o fotógrafo deve ser o elo que alimenta a autoestima das comunidades. Professor do time de fotógrafos que compõe o Imagens do Povo, ele ensina a fugir dos esteriótipos e semear o bem.
Além de mestre e um dos fundadores da Escola de Fotógrafos Populares, João Roberto Ripper é visto também como orquestrador do olhar sob a favela a partir de um conceito que cunhou com a prática: o bem-querer. Conhecido por aliar seu trabalho fotográfico à luta pelos direitos humanos, Ripper busca retratar a beleza das relações mesmo quando ela está submetida a grande injustiça social. Ele mostra a multiplicidade e a riqueza das histórias, saberes e fazeres, contribuindo para a difusão de uma imagem que valorize os grupos com os quais trabalha. Para ele, o fotógrafo deve ser o elo que alimenta a autoestima das comunidades. Professor do time de fotógrafos que compõe o Imagens do Povo, ele ensina a fugir dos esteriótipos e semear o bem.
De babá a fotógrafa:
'Assino Elisangela Leite'
A entrevistada por AF Rodrigues |
Nota de Rodapé – Fale um pouco sobre a tua infância.
Elisangela Leite – Há pouco tempo lembrei que meu pai gostava muito de fotografar. Tem uns quatro ou cinco meses que eu lembrei dessa história: o meu pai vinha em casa de ano em ano, porque ele trabalhava fora em uma usina em Minas Gerais, e sempre fazia várias fotos da gente. O hobby dele era fotografar e escutar música. O meu pai não bebia e não jogava, então gostava dessas coisas. Eu fui buscando saber por que eu gosto de fotografia, porque até pouco tempo eu não gostava. Todas as fotos que eu via eram somente mais uma foto. Até que fiz o curso e comecei a ver o mundo com outros olhos.
NR – Estimulada pelo teu marido?
EL – Sim, estimulada pelo A.F Rodrigues. Se não fosse ele, acho que não teria entrado pra Escola de Fotógrafos. Ele me deu o maior apoio.
NR – Tu tem imagens feitas pelo teu pai?
EL – Tinha muitas fotos, mas sabe como é criança, né? A gente rasgava tudo. Hoje em dia sinto a maior falta. Não tenho uma foto que meu pai tenha feito da gente.
Muita gente tem vergonha de dizer que mora na favela. Eu não, aonde for eu falo “eu moro na favela, Favela da Nova Holanda, Maré, conhece?”
Laço - Elisangela Leite |
NR – Me conta mais sobre a tua trajetória.
EL – Eu nasci na Paraíba, mas fui criada em Pernambuco, então me considero pernambucana. Vim para o Rio de Janeiro aos 15 anos e comecei trabalhando como babá. Dos 15 aos 23 anos fui babá. Depois, o garoto cresceu e fui trabalhar numa loteria, que era dos avós dele. Trabalhava na loteria e morava na casa deles. Então, o que eu conhecia de favela dessa época era o que a televisão mostrava. Mesmo tendo a minha tia que morava na Nova Holanda, eu morava em Copacabana. Eu não conhecia nada, só ia lá no final de semana. O que a tevê mostrava era o certo, o verdadeiro. Só mostra violência, né? Não mostra o outro lado. Com 22 anos fui morar com a minha tia, daí entendi o que realmente era a favela. Mas só me senti favelada depois, por meio da fotografia.
NR – Explica pra mim o que significa positivar este termo: favelado.
EL – Se sentir própria daquele espaço, como se você tivesse nascido ali. Se assumir. Muita gente tem vergonha de dizer que mora na favela. Eu não, aonde eu for eu falo “eu moro na favela, Favela da Nova Holanda, Maré, conhece?” Algumas pessoas ficam olhando, mas perguntam logo como é. Daí a gente fala que tem vários projetos, que tem aula de fotografia. A gente tenta mostrar a favela com outros olhos, os olhos além da grande mídia.
Os pescadores que eu fotografei ficam no Parque União, que é uma das dezesseis comunidades da Maré, embaixo da linha vermelha (...) Depois a gente saia pra pescar. Eu ficava ouvindo as histórias deles, nós conversávamos mais que fotografávamos.
NR – Fale mais sobre essa diferença entre o olhar da grande mídia e o olhar dos fotógrafos populares.
EL – A grande mídia só entra na favela para mostrar a tragédia. Nós não, estamos ali mostrando o cotidiano, a alegria, a dança, as brincadeiras, as famílias. Ali as pessoas vivem normalmente, estudam, trabalham, fazem faculdade, intercâmbio e elas têm direito a tudo o que a dita cidade tem. A gente tenta mostrar este outro lado, o lado humano das pessoas. É isso que o Ripper nos ensinou. A gente tenta passar isso pra frente. Conversamos com os moradores para eles também se sentirem pertencentes do lugar. Porque muitos não se sentem, ficam com vergonha. Se você não se assumir, quem é que vai te assumir? Quem é que vai te dar valor?
O prêmio - Elisangela Leite |
NR – Queria agora que tu me falasse do teu trabalho com os pescadores. Explicando também pra quem não é do Rio, onde eles ficam?
EL – Eu comecei a pesquisar estes pescadores por intermédio da Jaqueline Félix, Adriano (AF Rodrigues) e Ratão (Diniz), que são o meus amigos mais próximos. A Jaque, na mesma época em que o Ratão e o Adriano faziam a Escola, trabalhou o tema dos pescadores. Quando eu tive que escolher o meu projeto na Escola fiquei pensando: "vou fotografar o que?" Criança, idoso... “vou voltar lá nos pescadores, eu gostei deles. Vou fotografar a história deles, não quero fotografar eles pescando, mas eles ali no dia a dia, no cotidiano dentro da colônia, costurando a rede, construíndo barcos, consertando barcos”, e esse foi o meu projeto. Os pescadores que eu fotografei ficam no Parque União, que é uma das dezesseis comunidades da Maré, embaixo da linha vermelha. Eu ia pra lá quase todos os dias e ficava batendo papo com eles, alguns já me conheciam, já tinham uma certa confiança e outros eu fui conquistando. Depois a gente saia pra pescar. Eu ficava ouvindo as histórias deles, nós conversávamos mais que fotografávamos. Eu quero voltar lá. Tá faltando tempo.
Natureza em tela - Elisangela Leite |
EL – O legal das minhas fotos é que você vê a Baía de Guanabara. E você sabe que ela é toda poluída. Mas nas minhas imagens você não vê essa poluição. Eu tentei mostrar o belo, como o Ripper sempre ensinou pra gente “fotografe o melhor, mostre o belo, tente fazer outra imagem, não faça o que todo mundo faz”. Cada vez que eu ia clicar eu pensava no que ele falava. Este era o meu objetivo e ainda é, mesmo hoje trabalhando para um jornal. Eu trabalho pra um jornal comunitário, dentro da Nova Holanda mesmo, o Maré de Notícias. Eu fotografo com esse pensamento. E se alguém não quer ser fotografado eu não insisto. Até ganhar a confiança dele.
NR – E qual é teu próximo projeto?
EL – Continuar com os pescadores. Ainda falta muita coisa, falta registrar outras colônias no entorno da Maré. A z10 de Ramos e a sub-colônia no Pinheiro ainda não fotografei. Eu quero fazer fotos dessas pessoas, quero mostrar a luta deles. Os pescadores estão lutando por essa tradição pesqueira que está morrendo. Os filhos não querem seguir, não dá dinheiro. E eles precisam trabalhar em outras coisas, uns são pedreiros, outros costuram redes pra ganhar um trocado e tentam pescar mais longe da baía, em alto mar. Isso quando conseguem um barco grande. O que eles mais fazem é passeio turístico nos finais de semana. É assim que eles sobrevivem. Eu gostaria muito de divulgar mais esse trabalho em prol deles.
Imagens dos fotógrafos da Agência-Escola Imagens do Povo
Ana Mendes, gaúcha de nascimento, é fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Mantém a coluna mensal Faço Foto e é curadora da coluna Coisa Íntima, autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores publicada aos domingos neste espaço.
terça-feira, 27 de novembro de 2012
O pior da democracia é a liberdade aparente
Aos amigos, colegas de blog e queridos leitores quero deixar para seu deleite e reflexão esses versos de Fernando Pessoa, escritos sob o heterônimo Álvaro de Campos, um dos mais belos poemas que conheço.
Enquanto isso, como o final de ano se aproxima, aproveito para tirar férias dos meus artigos e colunas, desejando a todos um auspicioso 2013, se a prepotência e a intolerância da direita israelense, a indústria de guerra norte americana e a ignomínia do STF brasileiro deixarem...
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Izaías Almada, escritor e dramaturgo, mantém a coluna mensal Pensando Alto
Enquanto isso, como o final de ano se aproxima, aproveito para tirar férias dos meus artigos e colunas, desejando a todos um auspicioso 2013, se a prepotência e a intolerância da direita israelense, a indústria de guerra norte americana e a ignomínia do STF brasileiro deixarem...
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Izaías Almada, escritor e dramaturgo, mantém a coluna mensal Pensando Alto
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
NR finalista do Top Blog 2012
A notícia chegou ontem: NR está na final do Prêmio Top Blog Brasil 2012.
Graças a vocês que votaram, estamos entre os três finalistas do concurso nacional pelo júri popular (os internautas), categoria Notícias e Cotidiano.
Obrigado a todos que votaram nesse espaço colaborativo de jornalismo e arte, que é mídia livre tocada com muita dedicação e compromisso pelo time de colunistas e colaboradores - é deles o maior mérito e de vocês, caros leitores, vem o nosso maior incentivo.
O resultado final será conhecido no dia 26 de janeiro de 2013, em cerimônia na cidade de São Paulo.
Agora é esperar e torcer.
Vamos em frente!
Thiago Domenici, editor e coordenador do NR
Graças a vocês que votaram, estamos entre os três finalistas do concurso nacional pelo júri popular (os internautas), categoria Notícias e Cotidiano.
Obrigado a todos que votaram nesse espaço colaborativo de jornalismo e arte, que é mídia livre tocada com muita dedicação e compromisso pelo time de colunistas e colaboradores - é deles o maior mérito e de vocês, caros leitores, vem o nosso maior incentivo.
O resultado final será conhecido no dia 26 de janeiro de 2013, em cerimônia na cidade de São Paulo.
Agora é esperar e torcer.
Vamos em frente!
Thiago Domenici, editor e coordenador do NR
Lembrança de uma lembrança
Passou tanto tempo que
já não me lembro de como eram tuas mãos,
embora me recorde, perfeitamente, que eram lindas;
E agora tenho medo de que ao voltar a vê-las
elas já não me pareçam tão encantadoras.
Se isso acontecer, saberei que
não foram elas que mudaram, mas eu
H.M.S, em “Cartas Inéditas”
“Se olho para trás e tento recordar os acontecimentos que vivi, os passos que me trouxeram até aqui, nunca estou completamente seguro de se estou rememorando ou inventando (…) O que já aconteceu e o que está por vir, na minha cabeça, são apenas conjecturas”, escreveu o colombiano Héctor Abad Faciolince em seu livro “Traiciones de la Memoria”.
Faciolince tem total razão: a memória é ficção, talvez a maior e mais bem construída de todas. E está viva. E é mutável. (As lembranças que tenho hoje da minha infância são diferentes das de dez anos atrás, e em dez anos seguramente serão outras.)
No filme “O segredo dos seus olhos”, o jovem viúvo que teve a mulher assassinada lamenta que, passado um ano da morte, começa a se esquecer de como era sua esposa. “Tenho que fazer esforço para recordar dela todo dia, dia e noite”. E comenta que já não se lembra se o último chá que ela lhe preparou era com limão ou com mel. “Então começo a duvidar, e já não sei se isso que vai ficando é uma recordação ou a recordação de uma recordação”, sentencia.
Se a vida é o original, a memória é a cópia, diz Faciolince. E agora divago eu: só que a cópia vai perdendo a cor, sofre a ação do tempo, amarela, fica menos nítida, e não raro perde mesmo algumas folhas. É preciso então fazer nova cópia, que não é feita a partir do original (porque esse já não se sabe onde está), mas da cópia. Até que chega um tempo em que a sucessão das cópias faz com que reste bem pouco do conteúdo daquela matriz. A recordação da recordação vira uma cópia bem pouco precisa do original.
Ainda assim e mesmo sabendo que seremos um dia vencidos, lutamos contra o esquecimento. Tratamos de preencher os vazios da memória com a ficção. Romantizamos, distorcemos, criamos, mentimos a nós mesmos, e assim construímos o que somos. “Ya somos el olvido que seremos”, dizia o poema de Borges achado no bolso da jaqueta do pai de Faciolince no dia em que foi assassinado. Vinte anos depois, o escritor contou a história do seu pai e a desse poema, e diz que o fez para que ela não caísse no esquecimento.
Ricardo Viel, jornalista, escreve de Lisboa, Portugal
Marcadores:
borges,
conexsom latina,
cronetas,
cronicas,
esquecimento,
memória,
poema,
Poesia
domingo, 25 de novembro de 2012
Coisa Íntima # 341
Série Coisa Íntima
Autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores. Participe, saiba +
Autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores. Participe, saiba +
Autor: Pedro Mox
Descrição: 341 to abbotsford avenue
Data: Junho de 2011
sábado, 24 de novembro de 2012
sexta-feira, 23 de novembro de 2012
Capoeira, o corpo pensa
O mês de novembro é bastante significativo para pensarmos os rumos das relações de poder dentro da nossa sociedade por dois motivos: o primeiro, por conta do dia da Consciência Negra. O segundo, por se comemorar hoje o nascimento de Manoel dos Reis Machado, o famoso mestre Bimba, grande propulsor da capoeira no Brasil, manifestação cultural que pode ser considerada a expressão da ironia do negro no país.
Há mais de quinze anos, me dedico a esse ritual de jogar capoeira e reconheço que um dos grandes falseamentos do homem moderno é o desprezo pelo corpo e a hipervalorização do pensamento e da consciência.
O que isso significa? Basta olharmos para os templos da atualidade – as academias – para nos depararmos com legiões de corpos hiperestimulados, num verdadeiro culto à forma física.
A questão a ser discutida aqui, caro leitor, é justamente essa “forma”. Na verdade, não valorizamos o corpo em si, mas sim uma ideia de forma corporal. Um padrão idealizado e imposto por uma cultura que despreza o risco, a vulnerabilidade, o que envelhece e tudo aquilo que nos remete a nossa humanidade.
Como educador físico, eu faria um esforço para convencê-los de que o esporte ocidental – onde incluo as atividades em academias – se caracteriza por um conjunto de técnicas que levarão o praticante a desenvolver capacidades físicas e um corpo quase invencível, forte, flexível, belo, com uma boa postura e um ótimo tônus muscular.
O problema nessa concepção, na visão de Muniz Sodré, por exemplo, é que ela “mantém a separação entre corpo e espírito, ambos em uma mútua relação agressiva.” Sodré diz ainda que a institucionalização do esporte “termina imbuído do mesmo espírito competitivo vigente nas relações de produção dominantes”.
Como capoeirista afirmo: antes de ser um esporte, a capoeira sempre foi jogo, ou seja, linguagem não conceitual de gestos, imagens e cantos, onde o corpo ganha centralidade. Mas que corpo é esse? Qual é a diferença?
O corpo na capoeira é um corpo que se assume emocional, pulsional e falível. Já dizia a velha cantiga: “na vida se cai, se leva rasteira, quem nunca caiu não é capoeira”.
Um bom capoeira assume o risco como condição primeira de um bom jogo e joga com, nunca contra. Uma das características fundamentais do jogo é o diálogo, expressão corporal simbólica da dor, da alegria, da agressividade, da sensualidade, do ataque, da defesa, do encontro.
Na capoeira não há tempo para a dualidade corpo/mente, nela o movimento se torna pensamento em ação e o pensamento é já uma ação em movimento. Mestre Camisa, do alto de sua sabedoria, brinca: “na capoeira não pode pensar para dar o golpe e nem dar o golpe sem pensar”.
A capoeira pode ser vivenciada como uma forma autêntica de exercício em busca da liberdade, onde os elementos de criatividade artística, o improviso, a surpresa e a malícia são ingredientes fundamentais. É um jogo de desequilíbrio e de desconstrução dos rígidos padrões corporais ocidentais, padrões esses que engessam o corpo em formas vendidas por uma sociedade mercadológica.
Enfim, jogar capoeira pode ser considerado uma ação eminentemente política. Axé!
Alexandre Luzzi, Professor de Educação Física, capoeirista, coordena o espaço Tai Ken, especial para o Nota de Rodapé. Ilustração de Caco Bressane, especial para o texto.
Há mais de quinze anos, me dedico a esse ritual de jogar capoeira e reconheço que um dos grandes falseamentos do homem moderno é o desprezo pelo corpo e a hipervalorização do pensamento e da consciência.
O que isso significa? Basta olharmos para os templos da atualidade – as academias – para nos depararmos com legiões de corpos hiperestimulados, num verdadeiro culto à forma física.
A questão a ser discutida aqui, caro leitor, é justamente essa “forma”. Na verdade, não valorizamos o corpo em si, mas sim uma ideia de forma corporal. Um padrão idealizado e imposto por uma cultura que despreza o risco, a vulnerabilidade, o que envelhece e tudo aquilo que nos remete a nossa humanidade.
Como educador físico, eu faria um esforço para convencê-los de que o esporte ocidental – onde incluo as atividades em academias – se caracteriza por um conjunto de técnicas que levarão o praticante a desenvolver capacidades físicas e um corpo quase invencível, forte, flexível, belo, com uma boa postura e um ótimo tônus muscular.
O corpo na capoeira é um corpo que se assumi emocional, pulsional e falível. Já dizia a velha cantiga: “na vida se cai se leva rasteira, quem nunca caiu não é capoeira”.
O problema nessa concepção, na visão de Muniz Sodré, por exemplo, é que ela “mantém a separação entre corpo e espírito, ambos em uma mútua relação agressiva.” Sodré diz ainda que a institucionalização do esporte “termina imbuído do mesmo espírito competitivo vigente nas relações de produção dominantes”.
Como capoeirista afirmo: antes de ser um esporte, a capoeira sempre foi jogo, ou seja, linguagem não conceitual de gestos, imagens e cantos, onde o corpo ganha centralidade. Mas que corpo é esse? Qual é a diferença?
O corpo na capoeira é um corpo que se assume emocional, pulsional e falível. Já dizia a velha cantiga: “na vida se cai, se leva rasteira, quem nunca caiu não é capoeira”.
Um bom capoeira assume o risco como condição primeira de um bom jogo e joga com, nunca contra. Uma das características fundamentais do jogo é o diálogo, expressão corporal simbólica da dor, da alegria, da agressividade, da sensualidade, do ataque, da defesa, do encontro.
Na capoeira não há tempo para a dualidade corpo/mente, nela o movimento se torna pensamento em ação e o pensamento é já uma ação em movimento. Mestre Camisa, do alto de sua sabedoria, brinca: “na capoeira não pode pensar para dar o golpe e nem dar o golpe sem pensar”.
A capoeira pode ser vivenciada como uma forma autêntica de exercício em busca da liberdade, onde os elementos de criatividade artística, o improviso, a surpresa e a malícia são ingredientes fundamentais. É um jogo de desequilíbrio e de desconstrução dos rígidos padrões corporais ocidentais, padrões esses que engessam o corpo em formas vendidas por uma sociedade mercadológica.
Enfim, jogar capoeira pode ser considerado uma ação eminentemente política. Axé!
Alexandre Luzzi, Professor de Educação Física, capoeirista, coordena o espaço Tai Ken, especial para o Nota de Rodapé. Ilustração de Caco Bressane, especial para o texto.
Marcadores:
alexandre luzzi,
caco bressane,
capoeira,
consciência negra,
corpo,
corpo a corpo,
Cultura,
desenho,
espaço tai ken,
Esportes,
ilustração,
mente,
Música
Moto contínuo
Das pessoas que moram no meu coração, duas estão grávidas. Esta continuação da vida, que não deixa as misérias humanas dominarem tudo, sempre me comove. Já imaginou o que seria de nós se soubéssemos que não haveria mais bebês, que a vida humana acabaria na nossa geração?
Meus dois filhos nasceram há mais de duas décadas – e, antes que se arme alguma confusão, esses bebês do momento não estão vindo deles. Mesmo não sendo das mais nostálgicas, há anos sinto que a infância dos meus filhos, que, enquanto acontecia, com toda a proverbial intensidade, exigiu de mim o que já se sabe que exige, durou uns cinco minutos. Foi tão rápido, no meio de tanta coisa, e numa idade minha tão borbulhante, que quando eu me dei conta, já havia acabado.
Deixou um gosto de coisa boa, de baião-de-dois bem temperado, com um toque de pimenta malagueta, delícia total. Eles fizeram de mim uma pessoa melhor, com o perdão do clichê. Porque eu sinto que virei gente grande de verdade quando percebi que trazia em algum lugar uma reserva de energia até então desconhecida, essencial para driblar a exaustão completa, frequente na ralação da mãe-que-trabalha-muito-e-viaja. E quando, por causa deles, tive que exercitar intensivamente a superação de limites, a tolerância, a compreensão e o acolhimento. Acompanhava-me alguém muito especial, com quem compartilhei a travessia do oceano desconhecido, durante a qual aquelas crianças viraram adultos.
Espero com comovida expectativa os dois bebês a caminho desse mundão besta, que estamos dando conta de estragar bem, mas que tem música, passarinhos, macarrão e livros. Como não dá pra guardá-los no armário, vamos ter que contar pra eles que, misturadas com a beleza, o afeto e a harmonia, os humanos sabem fazer coisas terríveis. Vamos ajudá-los a absorver as novidades e se ajustar ao programado pra eles, que já é um bocado de coisa, tentando não esquecer que eles poderão fazer aquilo que quiserem com o que estaremos oferecendo. Nessa troca inigualável, que dá sentido ao momento presente, o frescor e a energia deles nos abastecerão para o futuro.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. + Textos da autora.
Meus dois filhos nasceram há mais de duas décadas – e, antes que se arme alguma confusão, esses bebês do momento não estão vindo deles. Mesmo não sendo das mais nostálgicas, há anos sinto que a infância dos meus filhos, que, enquanto acontecia, com toda a proverbial intensidade, exigiu de mim o que já se sabe que exige, durou uns cinco minutos. Foi tão rápido, no meio de tanta coisa, e numa idade minha tão borbulhante, que quando eu me dei conta, já havia acabado.
Deixou um gosto de coisa boa, de baião-de-dois bem temperado, com um toque de pimenta malagueta, delícia total. Eles fizeram de mim uma pessoa melhor, com o perdão do clichê. Porque eu sinto que virei gente grande de verdade quando percebi que trazia em algum lugar uma reserva de energia até então desconhecida, essencial para driblar a exaustão completa, frequente na ralação da mãe-que-trabalha-muito-e-viaja. E quando, por causa deles, tive que exercitar intensivamente a superação de limites, a tolerância, a compreensão e o acolhimento. Acompanhava-me alguém muito especial, com quem compartilhei a travessia do oceano desconhecido, durante a qual aquelas crianças viraram adultos.
Espero com comovida expectativa os dois bebês a caminho desse mundão besta, que estamos dando conta de estragar bem, mas que tem música, passarinhos, macarrão e livros. Como não dá pra guardá-los no armário, vamos ter que contar pra eles que, misturadas com a beleza, o afeto e a harmonia, os humanos sabem fazer coisas terríveis. Vamos ajudá-los a absorver as novidades e se ajustar ao programado pra eles, que já é um bocado de coisa, tentando não esquecer que eles poderão fazer aquilo que quiserem com o que estaremos oferecendo. Nessa troca inigualável, que dá sentido ao momento presente, o frescor e a energia deles nos abastecerão para o futuro.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. + Textos da autora.
Marcadores:
crianças,
cronetas,
cronicas,
de um tudo,
filhos,
nascimento,
ser mãe,
tempo
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
A guerra virtual
Na oitava entrevista da série "O mundo Amanhã", o fundador do WikiLeaks, Julian Assange se junta aos seus companheiros de armas, os criptopunks, virtuosos cyberativistas que lutam pela paz na internet. E avisam: não haverá paz sem liberdade.
“Uma guerra invisível e frenética pelo futuro da sociedade está em andamento. De um lado, uma rede de governos e corporações vasculham tudo o que fazemos. Do outro lado, os Criptopunks, desenvolvedores que também moldam políticas públicas dedicadas a manter a privacidade de seus dados pessoais na web. É esse o movimento que gerou o WikiLeaks”, diz Julian Assange, na introdução da oitava entrevista da série World Tomorrow.
Dividida em duas partes, a entrevista traz Assange reunido com seus companheiros Andy Muller Maguhn, Jeremie Zimmerman e Jacob Appelbaum, cyberativistas que lutam pela liberdade na internet. “É só olhar o Google. O Google sabe, se você é um usuário padrão do Google, o Google sabe com quem você se comunica, quem você conhece, do que você pesquisa, potencialmente sua orientação sexual, sua religião e pensamento filosófico mais que sua mãe e talvez mais que você mesmo”, fala Jeremie.
No bate-papo, eles conversam sobre os desafios técnicos colocados pelo furto do governo a dados pessoais, a importância do ativismo na web e a democratização da tecnologia de criptografia. “A força da autoridade é derivada da violência. As pessoas deveriam conhecer criptografia. Nenhuma quantidade de violência resolverá um problema matemático.
E esta é a chave-mestra. Não significa que você não pode ser torturado, não significa que eles não podem tentar grampear sua casa ou te sabotar de alguma forma, mas se eles acharem alguma mensagem criptografada, não importa se eles têm força de autoridade. Por trás de tudo que eles fazem, eles não podem resolver um problema matemático”, sentencia Jacob. Na entrevista, os criptopunks avisam: para se ter paz na internet, é preciso haver liberdade. Ou a guerra vai continuar".
O material foi produzido pelo WikiLeaks em parceria com o canal RT, da Rússia e a publicação e adaptação no Brasil é de responsabilidade da Agência Pública.
O Nota de Rodapé é um dos sites/blogs parceiros da Pública na reprodução dessas entrevistas, 12 no total, que vão ao ar todas às quartas-feiras, às 18h.
Assista a seguir a entrevista em vídeo e com legendas em português ou clique aqui para baixar o texto completo da conversa.
“Uma guerra invisível e frenética pelo futuro da sociedade está em andamento. De um lado, uma rede de governos e corporações vasculham tudo o que fazemos. Do outro lado, os Criptopunks, desenvolvedores que também moldam políticas públicas dedicadas a manter a privacidade de seus dados pessoais na web. É esse o movimento que gerou o WikiLeaks”, diz Julian Assange, na introdução da oitava entrevista da série World Tomorrow.
Dividida em duas partes, a entrevista traz Assange reunido com seus companheiros Andy Muller Maguhn, Jeremie Zimmerman e Jacob Appelbaum, cyberativistas que lutam pela liberdade na internet. “É só olhar o Google. O Google sabe, se você é um usuário padrão do Google, o Google sabe com quem você se comunica, quem você conhece, do que você pesquisa, potencialmente sua orientação sexual, sua religião e pensamento filosófico mais que sua mãe e talvez mais que você mesmo”, fala Jeremie.
No bate-papo, eles conversam sobre os desafios técnicos colocados pelo furto do governo a dados pessoais, a importância do ativismo na web e a democratização da tecnologia de criptografia. “A força da autoridade é derivada da violência. As pessoas deveriam conhecer criptografia. Nenhuma quantidade de violência resolverá um problema matemático.
E esta é a chave-mestra. Não significa que você não pode ser torturado, não significa que eles não podem tentar grampear sua casa ou te sabotar de alguma forma, mas se eles acharem alguma mensagem criptografada, não importa se eles têm força de autoridade. Por trás de tudo que eles fazem, eles não podem resolver um problema matemático”, sentencia Jacob. Na entrevista, os criptopunks avisam: para se ter paz na internet, é preciso haver liberdade. Ou a guerra vai continuar".
O material foi produzido pelo WikiLeaks em parceria com o canal RT, da Rússia e a publicação e adaptação no Brasil é de responsabilidade da Agência Pública.
O Nota de Rodapé é um dos sites/blogs parceiros da Pública na reprodução dessas entrevistas, 12 no total, que vão ao ar todas às quartas-feiras, às 18h.
Assista a seguir a entrevista em vídeo e com legendas em português ou clique aqui para baixar o texto completo da conversa.
Assinar:
Postagens (Atom)