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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 14 de março de 2012

Prosa de corredor

É que outro dia, encompridando pelos corredores da Redação aqui do NR a conversa com minha colega Fernanda Pompeu sobre seu texto Bye, Bye, há duas semanas, ocorreu que ela me referisse - acrescendo à Kodak, marca recém-extinta que lhe recordava a juventude - Grapette, um refrigerante de uva que também já desapareceu, e que a faz lembrar da infância.

Fiquei com isso de lembrar da infância na cabeça e, de noite - artimanha do inconsciente - sentei-me cheio de decisão para ver aquele documentário sobre Ayrton Senna de que o pessoal anda falando. Aí me lembrei da conversa com Fernanda, porque para mim Senna (feito Grapette para ela) também retraz a infância.

Eu era um menino de dez anos quando “Senna bateu forte”, como disse Galvão Bueno para que minha memória jamais pudesse esquecer. Não era fã em especial de Formula 1, o esporte, mas acordava todas as manhãs de domingo para me juntar a meu pai e meu tio André, que então morava conosco, e “ver a largada”.

Meu pai e meu tio, um, Flamengo, o outro, Vasco, viviam por isso às turras, e estendiam a rivalidade esportiva dos gramados para as pistas - meu pai torcia (pasmem!) para Prost, e meu tio, para Senna. Menino, dividia-me entre o amor de um, paterno, e o do outro, paternal; de modo que eu, desde cedo cultor do bom senso e da conciliação, virei Flamengo e Senna.

Mas o caso é que, voltando ao assunto, chorei novamente a morte de Ayrton Senna ao ver o filme. Por transportado de volta à infância, chorei não a perda de um herói nacional, senão a do meu próprio. Chorei de certa adrenalina, vinda não da velocidade dos carros, senão da catarse de ter-me revisto menino - por semanas desenhando (visto de cima) ou montando de Lego protótipos de carrinhos de F1, após o desastre da Tamburello.

Sentir ser de novo menino emociona acho que porque o tempo da infância é o que de mais parecido existe na experiência da gente com o tempo do mito, que é um tempo assim sempiterno, só de presente e mais nada. Tempo que nunca passa - e que, de tão bom, também nunca chega.

Acho que é por isso que a gente, daqui e dali, fica sempre flertando com voltar para ele, Fernanda. Por isso que a gente marca o caminho que faz no percurso da vida com Grapettes e Ayrtons Sennas, feito Joãozinho (irmão de Maria) marcou uma trilha na mata com migalhinhas de pão. Aí a gente, besta, acha que só consegue voltar lá para onde fica nossa casa porque enxerga as migalhas no chão. E só quando a gente não as vê mais, porque comidas pelos corvos (pelo tempo) é que a gente descobre que nunca dependeu delas - porque, no fundo, sempre soube o caminho de cor.

Talvez porque nunca tenha havido sequer nem caminho, e a gente tenha estado mesmo sempre sempre lá em nosso velho lugar de cada um.

Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal toda primeira quarta-feira do mês corrente. Escreve de Salvador.

5 comentários:

Viel disse...

Grande texto, menino Sangio. Pois você e Fernando poderiam passar pela minha mesa quando forem bater uns papos assim e descemos ali na padaria do Freitas pra tomar um pingado e falar da vida, tá bom?
Abraco,
Teu xará

Fernanda Pompeu disse...

Aí, Ricardo. Puxa vida, seu texto me tocou, me tocou. E melhor, dialogou.
Fora tudo isso, ele tem imagens maravilhosas. Super. Meus beijos.

Fernando Evangelista disse...

Caramba, que texto. Que texto! Excelente.

Anônimo disse...

Ricardo e Fernando(a) predonimam no NR. E são todos excelentes. Ainda não tinha lido você, gostei muito, parabéns! Escreve mais vezes.
Fredo Sidarta, SP

Ricardo Sangiovanni disse...

Salve salve, gente boa. Contente demais que tenham gostado. É uma alegria fazer parte dessa turma. Vamos em frente! Abraços!

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