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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Contraponto

Caro rato de gabinete, homo sapiens de bunda murcha, barriga pochete e pinto encollhido. Caro gestor de recursos humanos, sapato e certezas quadradas, ser de mente obtusa, operador de Excel, comedor de bandejão, cheirador de ar-condicionado. Em suma, caro burocrata. Este texto foi escrito para você.

E pela paciência dos que agonizam na fila do INSS, pela alma dos que sonham com o seguro desemprego, pelo tempo desperdiçado dos que surfam no site da Receita, espero que essas linhas tenham o efeito de uma escarrada no café morno e melado que você ingere em dozes homeopáticas pra alimentar a azia.

Atenção, caro burocrata, tire o olho do jogo de paciência e preste atenção!
Porque a revelação a seguir abalará as estruturas de seu intelecto de ondas curtas, dissolverá a cola de seus post-its, desbotará o azul Royal de suas esferográficas. Pois o fato, caro engravatado analógico, é que o relógio de ponto, esse objeto tão idolatrado por sua raça, esse instrumento de dominação, controle remoto dos assalariados não controla realmente nada.

É apenas um veneno para a alma humana, um ácido de intensidade moderada, que lentamente corrói a vontade do trabalhador e que um dia, quiçá, fará ruir todo o seu sistema arquivado em fichas alfanuméricas.

Confesso, caro burocrata, que demorei alguns meses para perceber a perversidade dessa maquineta de fazer bundões. A princípio achei que seria uma boa. Sete horas por dia, intercaladas por uma de intervalo (que, verdade seja dita, nunca ocorre realmente), total de quarenta horas semanais. Uma jornada suave, leve e arejada para nós jornalistas, acostumados a plantões, pescoções, jornadas adrenalizadas de doze, treze, catorze horas diárias com a circulação no talo, em potência máxima.

Portanto achei bom a princípio. Um reloginho mágico, leitor de digitais embutido, que limitava meu trabalho àquele intervalo fixo de tempo. Oito horas diárias. Nem mais nem menos.

Mas as semanas foram se enfileirando e algo começou a mudar. Em certos dias, o trabalho passou a acabar antes da jornada de oito horas. E conforme fui me habituando às tarefas, adquirindo traquejo e experiência, isso se tornou mais comum. Aos olhos do reloginho eletrônico, contudo, nada havia mudado. E aqui, caro burocrata, é que seu sistema se mostra obtuso e perverso. Pois ele não recompensa a eficiência. É cego e burro. É pela quantidade, não pela qualidade. É uma incubadora de fleumáticos preguiçosos.

Porque quando sobra tempo, a tendência natural do ser humano é gastá-lo com o ócio. Assim, após alguns meses de cabresto, numa tarde como outra qualquer, me flagrei postergando tarefas qual um funcionário público à espera da aposentadoria, preguiçosamente rolando a barra lateral do Facebook, falando sobre coisa alguma em intermináveis conversas de G-talk.

Afinal, por que fazer hoje o que se pode deixar para depois? Por que fazer rápido se ganhamos o mesmo para fazer devagar? Por que fazer bem feito se o que vale, se o que conta, na soma de descontos e benefícios do holerite, é o tempo que passamos nas dependências da firma?

Esses poderem maléficos do cartão de ponto se espalham rápido e atingem a todos. Qual um Ebola da vontade, corroem também a vitalidade de meus colegas. Os efeitos são perceptíveis a olho nu e não é difícil separar os trabalhadores que batem cartão dos que têm jornadas livres. Os escravos do ponto, caro burocrata, se movem em câmera lenta.

Eu, de minha parte, tento resistir. Faço meu trabalho com a máxima eficiência, com amor à criação. Ergo a voz contra seu sistema de autômatos bovinos, berro a meus superiores apontando a idiotice, mas também eles estão presos, caminhando com dificuldade no caramelo de burocracias que lhes imobiliza as pernas.

Qual um Robin Hood dos recursos humanos, tento roubar os rabichos de tempo. Fiquem com meu corpo porque minha alma e minha mente seguirão livres, cumprindo a jornada que quiserem e quando quiserem, penso comigo mesmo. Mas quem dera fosse tão simples. Porque eu tento, me empenho em outras funções, escrevo manifestos e contrapontos. Só que cada vez que pressiono o dedo sobre a luzinha do leitor de digitais, sinto que uma parte da minha humanidade, da minha juventude, da minha disposição para criar, inovar e sair pelo mundo de peito aberto se perdeu.

Cada vez que recolho o papelzinho amarelado com o horário da minha entrada ou saída eu me sinto mais parecido com você, caro burocrata de bunda murcha.

Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha. Ilustração retirada do blog do xilogravurista Murilo Silva, Esferografias.

4 comentários:

Anônimo disse...

Caro Tomás, muito boas as colocações. Serve pra quem decide que é assim que se controla o trabalho do outro ser humano. Voce só confundiu bastante causas e consequências. Voce culpou o escravo pela própria escravidão. Pesquisa mais a e verá em quase tudo a exploração do homem pelo homem.O servidor público não é um vadio postergando tarefas, atrasando benefícios, parasitando a nação. É uma peça de uma engrenagem viciada de uma sociedade onde a riqueza produzida por muitos é avaramente concentrada por poucos.Eu poderia dizer muito mais, mas acho que, por enquanto, isto basta. Saudações.

Tomás Chiaverini disse...

Caro anônimo,feliz que tenha apreciado minhas colocações. Mas talvez não tenha compreendido realmente o texto. Ele não é uma tese. É uma reflexão sobre uma experiência minha. Em nenhum momento culpo o trabalhador. E se culpo os burocratas, e se os burocratas se acham no direito de transferir sua parcela de culpa para o "sistema perverso", que tragam aqui seu café morno que tratarei de escarrar nele novamente.

Jandira disse...

Tomás, sou funcionária pública e, como diz a gíria, me identifiquei. O servidor público não é um vadio postergando tarefas e, sim, um ser vazio de si mesmo por tantas horas perdidas procurando dar sentido a uma tarefa inútil, de não servir nada a ninguém. Achei teu texto muito bem escrito. Qualquer dia desses vou levar o meu café morno prá vc, ok?

Tomás Chiaverini disse...

Brindemos às tarefas inúteis com nosso café morno, Jandira!

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