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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Por falar em família

Umas duas vezes por ano, me dá vontade de comer porcaria. Pode ser pastel de vento, enroladinho de salsicha, mas dessa vez foi hambúrguer de isopor com batata frita transgênica. Lanche comprado, peguei minha bandeja e fui, junto com uma amiga, para a varanda do restaurante, onde encontramos outra amiga, por acaso, e nos sentamos as três juntas.

Papo vai, papo vem, essa terceira amiga, de quem não sou íntima, comentou que dali seguiria pro aeroporto, pois seu irmão estava comemorando bodas de prata em outra cidade, e ela ia participar da festança. Um irmão que ela conhecera recentemente. O comentário assanhou nossa curiosidade, e então ela saiu-se com uma história que me entalou o isopor na garganta.

Filha única, ficou órfã de pai e mãe de uma só vez, aos nove anos. Foi, então, adotada pela família da melhor amiga da mãe, uma adoção plena em todos os sentidos. Cresceu cercada de gente e de amor.

Até o dia em que decidiu esclarecer uma suspeita que a atiçava havia muitos anos, de que seu pai havia tido outra família antes de se unir à sua mãe. Nesses tempos de redes sociais, não demorou muito pra que localizasse novos irmãos e recompusesse uma parte fundamental da sua história. Aproximou-se dessa outra família e estabeleceu vínculos com ela, o que bastou para que a mãe adotiva se ofendesse e a acusasse de desamor e ingratidão. Ela espera que esta situação seja superada. Sendo uma pessoa paciente, sensata e determinada, é bem provável que consiga.

Mas e os pais biológicos, morreram de quê? Acidente? Não. Seu pai assassinou a mulher a tiros, e depois se matou.

Faz uns quarenta anos. A mãe era linda e sedutora, querida e admirada pela comunidade por seu trabalho de assistente social. O marido morria de ciúmes, e tentava controlá-la de todas as formas. Não suportando a pressão, ela decidiu se separar dele. Pouco depois, aceitou a corte de outro homem e abriu espaço para um novo amor. Deu no que deu.

Essa amiga eu conheço há décadas, e jamais imaginei que arrastasse um nelson rodrigues pela vida afora. Ela é leve, bem humorada, bonita e sarada, transmite alegria e vitalidade. Contou-nos essa pauleira com a maior tranquilidade, sem sombra de melodrama, e nós duas ouvindo com o coração aos pulos.

Nos despedimos, e cada uma tomou seu rumo, eu meio desorientada. Em meia hora, tive uma aula magna sobre como a vida imita a literatura, ou vice-versa, nem sei. O que sei é que de vez em quando ela me surpreende de verdade. Inevitável pensar nas minhas próprias tragédias e achá-las tão insossas quanto aquela comida de plástico.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

14 comentários:

Anônimo disse...

Junia,só você mesma para conseguir transmitir essa situação com humor e respeito.Clareza total,vocabulário engraçado,muito ao estilo Junia. Parabéns.Nota cem.
Mummy Dircim

Carlos Augusto Medeiros disse...

Curioso como nossos problemas quando comparados sempre parecem menores. Parece doença: no final, para quem sente a dor é sempre dolorosa.
Obrigado. Abraços, Carlos.

Pastora Leila Müzel dos Santos disse...

Querida,
Como sempre em poucas linhas descortinaste toda uma vida feita de escolhas acertadas. Uma lição de superação e perdão.A dureza da vida não conseguiu endurecer o coração da moça que saltitante saboreia o melhor dela. Parabéns pela escolha do texto e pela lucidez da escrita! beijos e abraços meus e do MM...

Elézer Jr. disse...

O exemplo dessa sua amiga é inspirador, ainda que eu fique com a impressão de que ela consegue manter essa tranquilidade hoje por já ter chorado tudo que precisava - o que só demonstra serenidade e segurança da parte dela. E a sua narrativa continua impecável - em que pese o engasgo com o sanduíche de isopor. Venham crônicas!

Shirley disse...

Querida Junia, nossas tragédias pessoais são assim, só nós sabemos o quanto nos custa ou custou superá-las. Nunca são insossas, sobretudo se causam ou causaram sofrimento na gente. É claro que histórias assim como a de sua amiga não são tão comuns ou as gentes escondem, vai saber. Eu penso que Nelson Rodrigues não inventou tudo aquilo, ouviu coisas aqui e ali e construiu seu repertório maravilhoso de famílias e sociedade, que nos faz pensar que nunca saíram da ficção. Mas queria mesmo era te dizer: que bom que a vida ainda te surpreende, mesmo que com uma história tão triste assim... Porque triste mesmo é ficar vivendo uma mesmice e já não se estranhar com nada que aparece pela frente. Não sofrer com a dureza, não se alegrar com os presentes da vida, não se espantar com o mundo! Fico feliz de fazer parte da mesma tribo que você. Axé, dona Junia!

Vera Golik disse...

Junia querida! Que bom ler mais uma de suas crônicas. Parece que estou vendo você na mesa, ouvindo com atenção e abraçando sua amiga como já fizemos algumas vezes juntas. Obrigada por compartilhar! Histórias de vida são o combustível para que possamos refletir sobre os nossos roteiros, sempre com algo supreendente para contar e deixar como rastro, se possível, para inspirar e se superar. um beijo grande ammiga querida!

Anônimo disse...

Obrigada, Marina! - a dona da história. Júnia

Anônimo disse...

Querida Júnia, a sua crônica demonstrou a essência da intimidade de uma amizade. Por conta da sua incrível sensibilidade, não foi necessário que passássemos anos, tempos ou horas conversando sobre nossas vidas e particularidades para se inspirasse numa crônica tão incrível. Quem agradece aqui sou eu pela honra de fazer parte das suas crônicas. Beijos!

Anônimo disse...

Essa é a Marinex!
Júnia

Norma Sanchis disse...

Junia, maestra en el arte de lograr un texto profundo, de varias lecturas posibles, con esa economia de palabras y simpleza.
Abrazos!

Hamza disse...

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