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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A casa em frente

Uma voz de mulher chama o nome do meu marido na porta de casa, e imediatamente me vem à memória a vizinha da casa da frente. Morávamos no interior, uma família religiosa e de bem. Desde o dia em que nos mudamos para ali, soubemos que em frente à nossa casa vivia uma mulher imoral. Era “a outra” de um homem casado, e com ele tinha filhos. Moravam ali, também, os pais dela, numa naturalidade que afrontava ainda mais a vizinhança, muito ciosa das aparências.

O homem visitava sua segunda família todos os dias, e periodicamente trazia uma generosa quantidade de mantimentos, o que demonstrava que cumpria com o dever de sustentar seus filhos – algo que muitos pais ignoram com a maior tranquilidade. A gente torcia o nariz para aquela proximidade incômoda com a imoralidade, mas não havia muito que se pudesse fazer a respeito. E estávamos terminantemente proibidos de nos aproximar daquela casa. Era uma convivência forçada, mas pacífica.

Ele tinha carro, num tempo e num lugar em que ainda eram raros. Um belo dia, sei lá por que razão, estacionou-o do lado de cá da rua. Quando cheguei da escola, encontrei uma baita confusão em casa e minha mãe exaltada, muito nervosa. O carro “daquele senhor” parado em frente à nossa casa podia sugerir que ela era o alvo da visita. Como ele se atrevia a colocá-la naquela situação? O que as pessoas poderiam pensar? Isto quando até os postes sabiam como era essa história e quem eram os personagens. A preocupação da minha mãe apenas refletia o tempo e contexto.

De lá pra cá, as relações mudaram tanto que essa história perdeu o sentido. Homens com duas famílias simultâneas são raros hoje, tanto quanto mulheres que se sujeitam a ser “a outra” como opção de vida – ou falta de opção. O advento do divórcio e a liberalização dos costumes tornaram essas práticas quase pré-históricas. Parece-me que os casos paralelos estão hoje muito mais no terreno da diversão e da emoção rápida.

Também, dá pra pensar que está sepultada a ideia de que as mulheres comprometidas devem estar acima de qualquer suspeita e ter sempre uma conduta inquestionável. E de que aos homens tudo é permitido. Quero crer que há mais atenção aos sentimentos e desejos do que às aparências, e que hoje as pessoas, especialmente as mulheres, têm mais noção de autonomia e possibilidade de escolha.

Vendo algumas cenas da vida de um casal de cantores que fez muito sucesso nos anos cinquenta e sessenta, que passou recentemente na televisão, chamou-me muito a atenção, pelo que me fez recordar de como eram as coisas nesse tempo não muito distante, o fato de que o menos importante na vida familiar eram os sentimentos.

Estes eram quase sempre ignorados ou atropelados e pisoteados em nome de palavras enormes como fidelidade, moral, posse, honra, hombridade, família, reverência, obediência, aparência e outras do mesmo naipe. O que as pessoas sentiam e como se sentiam era o que menos importava.

Não que a vida tenha ficado mais fácil, mas que se abriu caminho para relações mais verdadeiras, embora talvez mais turbulentas, disto não tenho dúvida. E acho muito difícil haver algo mais doloroso do que viver uma vida inteira sem que seus sentimentos sejam levados em conta.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

5 comentários:

Shirley disse...

e viva a turbulência das relações e suas verdades, que sabemos nem sempre são tão verdadeiras assim (as relações). mesmo assim, terem sido abertas - a custo altíssimo - a possibilidade de que as mulheres e os homens possam ser mais fiéis a seus sentimentos do que às convenções sociais, francamente, é uma evolução e tanto. como diria nosso querido Chico, em seu Choro Bandido:
Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa, são bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons.
Beijos querida!

Anônimo disse...

Há que se evoluir! Embora pareça muito para quem viveu em outros tempos, ainda convivemos com muita intolerância. Num mundo onde existem pessoas tão diversas na conduta, no sentimento, no pensamento temos que mudar de ótica, enxergar além da aparência e permitir que cada um trilhe o seu caminho de maneira feliz!
Beijos, saudade.

coresentrenos disse...

Sempre que vejo ou fico sabendo de uma situação com este foco e neste contexto, me pergunto: Quem é a outra???
Não é uma questão de quem chegou primeiro ou quem, oficialmente, é reconhecida, mas qual delas tem a certeza que tem o seu lugar inabalével. Qual delas tem a certeza de sua importancia e não importa o que os outros pensem?
Acho que para haver uma "traição", há em algum momento da relação a permissão do casal para se instalar a triangulação.
É isso, justificativa temos aos montes, razões aparecem, desejos pulam, amor transborda mas a pergunta que não quer calar é: Qual o ganho secundário disso tudo?
bjos,
Soraya

Anônimo disse...

Juniótide,
Esse papo me fez lembrar, entre outras coisas, que só vim a conhecer muito do que a minha mãe sentia após a morte dela, quando pudemos ler - meus irmãos e eu - as coisas que ela escrevia, inclusive atrás das fotos que enviava para a a irmã dela, minha avó, etc.(que lhe tinham sido devolvidas quando minha tia faleceu e ela guardava para ninguém ver). Beijão!

Guacira disse...

É isso aí Júnia, superar a dominação das mulheres, também nas relações afetivas e sexuais, é condição indispensável para que nós possamos desfrutar e oferecer amores mais verdadeir@s.

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