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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

De papel ou de carne?

Faz um ano que não leio nenhum livro de ficção. Não me orgulho, mas também não me repreendo. Simplesmente aconteceu. Depois de décadas como leitora quase exclusiva de literatura, passei a mergulhar em biografias, memórias, autoajudas chiques, grandes reportagens.

O fato é que agora prefiro as personagens de carne e osso. Essas, como nós, são incompletas, sextavadas. Ora decididas, ora vacilantes. Ora cheias de coragem, ora cobertas de medo. Essa gente que respira e transpira no interior dos trens de metrôs, ou dentro dos pernósticos Hyundais.

Gente que sonha alto e realiza baixo. Que trai seu amor. Que deixa passar a grande oportunidade. Que detesta os corruptos, mas molha a mão do guarda. Que foge de si mesma. Em suma, gente sem heroísmo.

Mas também capaz de altas ternuras. Capaz de solidariedade. Capaz de trabalhar por uma vida inteira e morrer assim de repente. Morrer sem ter pintado um quadro, escrito uma página, tocado uma flauta, preparado uma moqueca.

Gente que não chega aos pés de uma Emma Bovary, uma Capitu, uma/um Orlando, um Riobaldo, um Fabiano, um Otelo, uma Julieta, um Don Quijote, uma Ana Karenina, uma Lisbeth Salander. Complete a lista de personagens memoráveis.

Não sei porque minha curiosidade se voltou para a caixa da padaria, o atendente da farmácia, o dono da quitanda, o blogueiro de setenta anos, a jornalista sem jornal, a médica que cuida da minha mãe, o marronzinho da avenida.

Talvez seja uma reação a tantos anos bebendo da imaginação de autores bons e ruins. Anos acompanhando narrativas inventadas. Amando, como uma louca, a arte da ficção. Ou talvez por mesquinhez e vingança já que não escrevi o grande romance, que não criei a personagem estupenda.

Pode ser. Pode ser. Sabe-se lá o que passa pela alma e pela cabeça das personagens de carne e osso. Ou talvez, o meu cansaço seja com as categorias, com as fronteiras de gênero, as etiquetas tão ao gosto das academias.

Quiçá eu esteja atrás do misturado, de uma narrativa-água que transborde da gaveta. Que abandone a dualidade fato-invenção, realidade-imaginação. Por conta disso, é cada vez mais difícil definir que diabo de escrita eu faço.

Pois todos os dias com os dedos no teclado: minto ou escrevo a verdade? Imagino ou investigo? Sou honesta ou trapaceio? Ou será que faço tudo isso junto e ao mesmo tempo?

A pergunta é: quem é mais real? A moça que acabou de tocar a campainha aqui de casa para me oferecer a palavra de Deus, ou o Homem-Aranha escalando prédios de papel machê?

fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.

5 comentários:

Ricardo Sangiovanni disse...

Grande, Fernanda ;)

Tito Glasser disse...

Somos reais pecadores Fernanda, implorando por estigmas em nossa vida de escriba.

Ótimo texto.

Beijo.

Anônimo disse...

Sei lá, querida Fernanda. Qualquer um é real, contanto que vc não pare de escrever. Egoisticamente, já que seus textos sempre me deixam mais pra bem-aventurado do que prá ensimesmado, digo-lhe para não fazer perguntas difíceis para si mesma. Gosto de vc desse jeitinho mesmo; cheia de seilaoques e inventividades. Para a gente comum, daqueles que a pequena pedra no sapato já é problema suficiente para o dia, tem que ficar o vislumbre de que tem gente que ultrapassa esse limite. E aí, tanto faz se vc é Madame Curie (que prosseguiu o trabalho do marido quando ele morreu) ou a Mulher Aranha. Vc agora é referência. Com todos os seus direitos reservados, inclusive o de ter dúvidas. Só não pode parar de escrever (de novo, egoisticamente). jsavio

Eva disse...

Excelente texto! Como diríamos aqui em Salvador...massa!!!! Sou gente de carne e osso que escreve sobre gente pequena de osso e pouca carne: meninos de rua do Pelourinho. Abraços. Eva Bulcão

Alba Lucy disse...

Adorei essa confusão vibrante multiconectada. Um espelho!

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