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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A dívida é nossa, Regina


por Moriti Neto   imagem Viviane Vallar*

Três semanas depois, ainda tinha a necessidade de escrever. Não tê-lo feito até pouco tempo, por aridez intelectual ou por estar atolado com os afazeres burocráticos da rotina, me causava um incômodo constante, dor de consciência mesmo. Era impossível esquecer os olhos de Regina, moradora de rua e dependente química, a quem encarei no dia 26 de setembro passado, constrangido pela minha incapacidade de intervir na realidade social trágica deste País, enquanto a mulher era varrida da Praça da Sé.

“Vai pra onde?”, foi a pergunta que consegui balbuciar depois de saber seu nome. A vergonha me impedia de falar muito. “Pra onde der, moço. Sou usuária de drogas e minha vida é assim, sempre foi, na rua. Onde conseguir espaço pra montar minha barraca é que vou ficar”, foi a reposta de Regina, de sobrenome Ferreira.

Naquele fim de manhã, ela era uma entre os cerca de 200 moradores de rua que haviam montado acampamento na Praça da Sé e despertaram com a Guarda Civil Metropolitana (GCM) e equipes de limpeza da Prefeitura de São Paulo. A ordem era desmontar as barracas, “liberar espaço”. Um caminhão foi usado para retirar móveis, madeiras, lonas e demais objetos, que eram jogados na caçamba, muitos, inclusive, de uso pessoal.

Havia raiva no ar. Moradores protestavam contra o prefeito Fernando Haddad e afirmavam que não tinham para onde ir. Outros ofendiam e ameaçavam jornalistas, resultado óbvio da criminalização que a população de rua, principalmente os dependentes químicos, sofre de parte da mídia.

Regina não xingava, não ameaçava. O jeito, segundo ela, era mesmo procurar outra praça ou, como falava em tom mais baixo, esperar a saída da equipe da Prefeitura e voltar. Algo que uma parcela fez, a exemplo de 60 pessoas que, de novo, foram removidas, no dia 9 de outubro.

Não sei se Regina voltou. Não sei se foi novamente removida. Aliás, sei de pouca coisa, pois o mal-estar com a situação aumentou minha incompetência frente àquela tragédia social. Não consegui ficar mais tempo ali. Só graças a minha esposa, que nem jornalista é, tenho imagens registradas.

O peso ao ver as pessoas sendo varridas (quase literalmente) da ocupação na Sé, cheia de meninos de rua e famílias desabrigadas usando barracas de camping, me fez sentir e pensar por semanas. Refleti que Haddad, Alckmin, Kassab, eu, somos todos responsáveis. Mesmo a ausência de uma política séria voltada a essa população – que envolveria projetos habitacionais, assistenciais, educacionais e de saúde eficazes – é responsabilidade coletiva, nossa. Somente um debate constante, verdadeiro, comprometido e distante das soluções rasas pode retirar o tema da invisibilidade. O povo que circula na Sé – 3 milhões de seres humanos transitam diariamente por ali –ignora, por motivos diversos, a condição dramática exposta dos que ali ficam ao relento.

Marcante sobre a dificuldade dos governos na questão, a história de Regina e do grupo a que pertencia naquele dia (o verbo no passado indica que a formação de grupos e dos sentimentos de pertencimento e reconhecimento ficam comprometidos com a instabilidade da vida daquelas pessoas), passa pela Cracolândia, desocupada agressivamente pelo Governo do Estado em 2012, numa remoção motivada por disputa que envolve interesses imobiliários na área e que, já se sabe, espalhou pelo centro de São Paulo um problema socioeconômico e de saúde pública.

Não bastasse isso, o sofrimento seguiu com o fechamento, via prefeitura petista, da Tenda do Parque D. Pedro II, abrigo que funcionava próximo da região da Sé e foi reaberto recentemente, desorganizado e precário, segundo moradores de rua e até funcionários que lá estiveram após as “limpezas”.

Todas as gestões, de tucanos a petistas, têm discursos recheados de justificativas para as medidas, mas, na verdade, o que se vê são apenas discussões e ações precárias, seja no interior das administrações públicas, que mal apostam no princípio da transversalidade de gestão para atuar, seja na abordagem midiática, superficial e cheia de rótulos. Talvez admitir que não se sabe exatamente a forma de agir e que não se pode fazer muito sem grande envolvimento coletivo, fosse o passo a ser dado para tornar o debate tão amplo quanto necessita ser.

Enquanto tal discussão não ocorre, as “limpezas” continuam. Resulta disso, cada vez mais, um povo marcado, dizimado emocional e fisicamente, a quem os “homens de bem” culpam pelos maus-tratos à cidade, pela violência e a “praga da droga que destrói famílias”. A cobrança está errada, meus caros. Nós é que devemos.

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Moriti Neto, jornalista, repórter e editor-assistente do NR.

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