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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O prisioneiro argelino


por Aleksander Aguilar*

Ótimo! Ônibus praticamente vazio. No andar de cima junto à janela, o banco da frente está desocupado. Logo, a viagem de relativos 25 minutos de Holborn até Caledonian Road, ainda que houvesse algum trafego à frente, seria razoavelmente fácil, quase agradável. Sentar nesse banco específico dos famosos ônibus vermelhos double deck é uma das melhores formas de observar as ruas de Londres – do alto, em movimento e, de preferência, em silêncio.

Mas Mohammed (nome fictício e ilustrativamente escolhido por ser um dos nomes mais populares na Grã-Bretanha) queria falar. Libertado naquela manhã após cumprir dois anos de pena na prisão para imigrantes de Canterbury (agora fechada), o argelino de bigode largo e escuro, de pouco mais de 35 anos de idade, mas com olhar tão cheio de energia que passaria por menos, estava comemorando. “Desculpe se estou incomodando, mas eu tô muito animado”, explicou-se ao perceber minha falta de reciprocidade a sua curiosa empolgação.

Ele havia decidido sentar no banco vazio ao lado do meu e um típico comentário sobre o miserável clima inglês, especialmente péssimo naquele verão, foi a estratégia de Mohammed para tentar iniciar uma conversa. Observações triviais com estranhos em ônibus não são muito comuns em Londres e, diante da minha aborrecida resposta com um movimento de cabeça, a vontade de papear de Mohammed acabaria frustrada. De início não acreditei que ele era um recém-libertado, mas quando percebi o entusiasmo do meu interlocutor interagi verbalmente. A prisão inglesa é terrível, segundo o que ele me contou. “Já estive preso na França e na Espanha também, mas aqui é a pior de todas”.

Mas Mohammed não deu detalhes. Apenas suspirou e olhou aliviado pela janela o movimento cinzento da cidade. Roubo e fraude foram os crimes do experiente ex-prisioneiro que naquele momento se dirigia a casa de um amigo para buscar o gato de estimação que havia deixado lá. Documentos como carteira de motorista e número de seguro social eram as suas especialidades. “E você vai seguir nesse negócio?”, pergunto sorridente. “É claro! Neste país você tem que ser rápido, ou eles te devoram”, responde convicto.

Não tive tempo de perguntar mais nada. Duas paradas antes da Blundell Street, ele apertou minha mão, perguntou meu nome e desceu correndo as escadas com uma animação juvenil, animado por ir ao reencontro do seu gato.

PAVILHÃO 9

A população carcerária na Inglaterra, segundo os dados estatísticos de setembro deste ano do Ministério da Justiça do Reino Unido, é de cerca de 85 mil presos, e corresponde a 98% da capacidade do seu sistema prisional. Há também brasileiros nas prisões inglesas, e bastante, de acordo com Mohammed.

Mas no Brasil, estima-se que o número de prisioneiros, apertados nos mais 1700 estabelecimentos do sistema penitenciário do país, é de aproximadamente 500 mil presos, o que faz do país a quarta maior população carcerária do mundo e com um sistema prisional superlotado que ainda assim tem um déficit de 200 mil vagas.

No começo deste mês, o massacre do Carandiru completou sua maioridade absoluta, 21 anos. O extermínio de 111 presos em 1992 na Casa de Detenção de São Paulo foi um episódio decisivo para a fundação da facção criminosa que atua dentro e fora do sistema prisional paulista, o PCC (Primeiro Comando da Capital) e tornou-se um símbolo internacional de violação de direitos humanos. O conhecido filme sobre a tragédia, do diretor Hector Babenco baseado num livro de Drauzio Varella, pode ser encontrado em lojas em todo o mundo, inclusive em Londres, e a realidade caótica do sistema penitenciário brasileiro também segue sendo vista diariamente no país.

Em agosto deste ano foram condenados 25 policiais acusados de participação na morte de 52 presos do Carandiru, num julgamento que demonstrou ao mundo a complexidade do sistema judiciário brasileiro. Conflitos na condução do processo, que envolveram diversas instituições e instâncias e confusão de competência entre os ramos militar e comum da Justiça, protelaram a decisão do caso em mais de duas décadas. Organizações internacionais de direitos humanos ressaltaram que os longos anos de espera por um resultado de condenação no Brasil favorecem a uma cultura de impunidade no país. E, para as Nações Unidas (relatório do ano passado da Revisão Periódica Universal - instrumento de fiscalização do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU), as péssimas condições das prisões superlotadas são um dos principais problemas de direitos humanos no país.

Os réus do Carandiru receberam uma pena de 624 anos de prisão em regime fechado e a perda do cargo público. Eles ainda têm o direito de recorrer da decisão em liberdade. Já o comandante da ação que resultou na invasão de 330 policiais no pavilhão 9 do Carandiru naquele ano, o coronel da reserva Ubiratan Guimarães chegou a ser condenado criminalmente em 2001 a 632 anos de prisão, mas também com direito a recorrer da pena em liberdade. No ano seguinte, (vejam só!) elegeu-se deputado estadual com o número "111" na cédula e beneficiado pelo foro privilegiado da condição de parlamentar, em 2006 acabou sendo absolvido pelo órgão especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

No mesmo ano, o policial foi assassinado a tiros em seu apartamento nos Jardins, área nobre de São Paulo. Acusada pelo assassinato, a ex-namorada do coronel, a advogada Carla Cepollina, foi absolvida pelo crime em júri popular por falta de provas.

O prédio da antiga prisão foi implodido, mas ao que parece, a incompetência e a impunidade no Brasil mantêm-se em pé sobre os escombros. Espera-se que Mohammed, antes de seguir “na correria” um dia também assista Carandiru.

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*Aleksander Aguilar é jornalista, doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais, candidato a escritor, e viajante à Ítaca, especial para o Nota de Rodapé

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