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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Viajar leve


por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Viajar virou uma febre. O que até poucas décadas atrás era privilégio dos “happy few”, dos privilegiados que podiam bancar as altas contas de passagens e hospedagem, tornou-se amplamente acessível à classe média e menos média. O resultado é muita gente viajando e lotando os lugares que antes eram reservados para os poucos escolhidos pela fortuna.

Quem ainda acha que o ato de viajar implica conforto e glamour está precisando desembarcar no aeroporto de Lisboa ou de Miami às seis horas da manhã. Ali, parece que o fim do mundo é uma questão de minutos para aqueles que como nós, brasileiros, ostentam passaportes da base da hierarquia viajeira, apesar de estarmos generosamente irrigando economias do topo, para lá de combalidas. Dinheiro não é tudo, repetem convenientemente os que nasceram do lado de cima do mundo quando questionados sobre as agruras enfrentadas por quem vai lhes fazer o favor de comprar diárias de hotel e fartas bugigangas.

A bagagem é todo um tema. Para algumas pessoas, viajar significa quase só a oportunidade de comprar, e muito, para juntar com o outro muito que já trazem nas malas. Carregam bagagens inacreditáveis, como se o avião fosse seu e não houvesse a necessidade de acomodar a tralha de todos. Já presenciei cenas de franca selvageria por parte de passageiros e tripulantes de voos em que era impossível chegar aos assentos do fundo devido ao caos provocado pelo entulhamento de volumes por todos os milímetros cúbicos possíveis e impossíveis. Estas experiências, somadas a outras de viajar por terra em transporte público, estão me impondo um exercício disciplinar dos mais interessantes.

Não preciso andar carregada, não quero mais andar carregada. É trabalhoso e muito chato. Posso muito bem ir e voltar sem comprar absolutamente nada no lugar de destino, se não cruzar com algo realmente especial, que simbolize aquela viagem - e que tenha formato e dimensões fáceis de lidar. Buscando atentamente nos armários, encontro roupas, sapatos e acessórios em quantidade mínima, que se conjuminem o suficiente para uma semana, seja a viagem de dez ou trinta dias. Estou treinando, e gostando muito.

Viajar leve é levar-se a si mesma a andar por aí, sem precisar arrastar um guarda-roupa sobre rodinhas e acumular mais cinco camisetas, três perfumes e quatro pares de tênis porque estão muito baratos. É olhar para os lados atentamente, nas feiras livres, nos parques, nas praças e praias e ruas onde estão as pessoas do lugar. Provar suas comidas, sentir seus cheiros, ouvir sua língua e sua música, observar como constroem suas casas, como organizam a vida e levar consigo a bagagem do que lhe chamou a atenção nas cores, paisagens, sabores e sensações, misturando com o que trouxe de casa. Dessa misturança a gente vai tirando um mundo maior aqui dentro e fora também, que cada vez mais aguce nosso interesse e admiração, em sua inesgotável capacidade de nos surpreender e impressionar. Quero treinar muito mais.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

4 comentários:

Anônimo disse...

Lição preciosa para a Mummy. Só consigo viajar com malas entupidas ,carregadas de trecos que se mostram, ao fim, desnecessários. Mas já aprendi a sentir o lugar onde estou. Pássaros, riachos, o verde da paisagem ou o branco neve, aquele barulho gostoso do trem cata jeca, como você diz, calam profundamente no meu eu. Reflexão à beira do riosinho que passa por aquele meio da mata purifica a alma. Viajar, ir para o espaço, respirar o ar do outro lado, sentir o povo nas ruas, tudo faz a gente pensar na pequenez do que somos. Ah! Mundo grande ! Ah! Natureza, obra do Criador !
Beijos da Mummy Dircim

Anônimo disse...

Viajar leve.... uma sapiência...
Leve viajar... quase levitar.
Também preciso aprender!
Beijos!!!
Carol Mendes

disse...

Ju, como sempre, vc me fez viajar... e, desta vez, foi, mesmo, com muuuuuuuita leveza! Amei seu texto! Fernando, sua ilustração está absolutamente perfeita! Parabéns aos dois e MUITO OBRIGADA pela... leveza! Tâ

Martina Puglia disse...

Oi Tia! Também gosto muito de viajar e ver as coisas típicas de cada lugar, aquelas coisas que só existem ali e que refletem a história daquele povo, daquela cidade... "levar-se a si mesma a andar por aí", "olhar para os lados atentamente"... É bem isso! Para citar um dos meus poemas favoritos, de um outro autor conhecido, Fernando Pessoa:
"Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu."
Beijos, Martina.

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