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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 25 de outubro de 2014

Dilemas do transe eleitoral

por Daniel Guimarães*

Não sei vocês, mas estou contando as horas pra domingo chegar e acabar logo essa eleição. Não porque conversar sobre política seja ruim, acho o contrário, gostaria é de poder falar de política sempre, mas com menos contaminação da agenda de marketing eleitoral, com mais liberdade e tempo para debater as questões estruturais e conjunturais. Com mais paciência para trocar uma ideia, desde os fantasmas conservadores até a camarada mais radical à esquerda. Mas já que o Thiago foi irresponsável/generoso o suficiente para me convidar a escrever aqui neste espaço, acho que o mais honesto é manter a irresponsabilidade e expor, pelo menos na reta final, a formação do meu pensamento sobre o que a eleição representa. Dilemas sobre formas de atuação política, coletiva ou individualmente, sobre o tipo de sociedade desejável e possível, por exemplo. Aviso desde já que um dos meus objetivos nessas eleições é não perder nenhum amigo ou amiga, nenhum camarada e nenhuma camarada. Independente do que venha a acontecer, será necessário um grande esforço de unidade entre a esquerda para lidar com um Congresso mais conservador e com este verdadeiro transe da direita que parece ter saído das caixas de comentários dos portais, dos murais do Facebook e que chegou às ruas.

Aviso também que esse texto não foi feito pensando nas questões que os conservadores estão atravessando, nem para pensar sobre como a direita se relaciona com as instituições. Estas instituições foram desenhadas à imagem e semelhança dos vencedores desta etapa histórica mala que é o capitalismo. Neste pequeno texto penso a partir do lado esquerdo, em especial o lado esquerdo não institucional. No limite é um texto sobre como eu lido com este dilema, ok. Não irei dissecar a experiência petista no governo federal, nem defender uma proposta que se pretenda hegemônica para lidar com a questão. Estou dando um passo atrás e pensando na posição subjetiva diante do dilema, não em como resolvê-lo.

Acho prudente desde já deixar claro que minha perspectiva utópica de sociedade é uma sociedade sem classes, na qual os trabalhadores e as trabalhadoras tenham a posse dos meios de produção; em que as pessoas possam manifestar seus desejos, que as relações entre diferentes gerações não precisem reproduzir o modelo familiar nuclear ainda hegemônico, que haja equilíbrio nas relações entre gêneros, raças; e que a organização social e política produza formas substitutivas para o Estado, dando conta das tarefas de infraestrutura, segurança, justiça, distribuição da produção, mas sem a centralização e o autoritarismo deste, que acentuam a alienação política dos sujeitos. Com sorte isso nos conduziria a um tipo de cidade, de espaço, de subjetividade menos enclausurada. Talvez nos leve a uma circunstância em que a responsabilidade e a liberdade de decidir quais inibições são importantes para nossa vida em sociedade façam sentido a todos e todas.

O problema é que esta minha utopia talvez nunca venha a existir. Meus pensamentos não são tão poderosos a ponto de transformar e moldar a realidade e realizar a mágica de deslocar as relações estruturais da minha própria psique para o mundo exterior (Freud). Como parêntese, recomendo a leitura do terceiro capítulo de Totem e Tabu (Animismo, magia e onipotência do pensamento), o mito fundador freudiano da civilização – ponto de apoio para o cara pensar uma origem da nossa organização social, comparando-a a “estrutura” neurótica. Cito um trecho como aperitivo:

“A possibilidade de uma magia contagiosa baseada na associação por contiguidade nos mostra, então, que o valor psíquico atribuído ao desejo e à vontade estendeu-se a todos os atos psíquicos que se acham à disposição da vontade. Há uma superestimação geral dos processos anímicos, ou seja, uma atitude para com o mundo que, em vista do que sabemos sobre a relação entre realidade e pensamento, só pode nos parecer uma superestimação deste último. As coisas recuam para segundo plano ante as ideias das coisas; o que se faz a essas tem de suceder àquelas. As relações existentes entre as ideias são pressupostas igualmente entre as coisas. (...) Na época animista, a imagem reflexa do mundo interior torna invisível aquela outra imagem do mundo que acreditamos perceber. (...) O princípio diretor da magia, a técnica do modo de pensar animista, é o da ‘onipotência dos pensamentos’”.

Não bastasse o limite da minha própria capacidade de transformar utopia em realidade, ainda existem muitas outras utopias para ela se relacionar. Ainda bem, diga-se, porque nesta relação as minhas tiranias inconscientes teriam maior chance de serem inibidas. À minha utopia se somam/divergem as utopias dos meus camaradas mais próximos, da organização que pertenço, que por sua vez não é única organização no mundo. Ela também se relaciona com projetos de outros atores, aliados ou inimigos.

Por fim, todas essas utopias passarão necessariamente por um teste de realidade, terão de lidar com as forças que disputam o espaço, os recursos, as demandas objetivas e subjetivas. Nunca teremos certeza sobre o que serão os resultados das nossas ações, portanto desconfio sempre de quem apresenta planos que preveem o que será da sociedade se tomarmos certo tipo de decisão, se nos mantivermos fieis a determinada cartilha; desconfio dos projetos que não incluam no cálculo político as tramas da vida cotidiana – coisas que parecem insuficientes diante do projeto utópico de sociedade, mas que dão cor e sentido a este curto período da vida de uma pessoa: ter mais ou menos conforto, morar em condições melhores ou piores (ou pior, ter ou não um lugar para morar), ter ou não um pedaço de chão para plantar, poder se deslocar no espaço ou ficar restrito ao que a especulação imobiliária determina, poder ou não ter satisfações sexuais próximas dos seus desejos mais profundos, poder ou não fantasiar uma ocupação profissional interessante, poder ou não criar filhos e filhas em condições saudáveis e criativas; ter ou não ter acesso a cuidados de saúde física e psíquica, se alimentar bem ou mal (ou pior, ter ou não ter como se alimentar), ter ou não proteção diante de ataques ou estruturas machistas, ter ou não proteção diante de ataques ou estruturas racistas. A lista é extensa e considero pilar da esquerda esta solidariedade essencial à classe trabalhadora, aos dominados, excluídos. Fazer um exercício de não enxergar o povo como um objeto de experiências políticas, mas um objeto investido do nosso amor e, no limite, sujeito de sua própria existência, a quem não se deve negar o direito de fazer uso das conquistas que a beneficiem, mesmo que não sejam equivalentes ao “fim da história” revolucionário.

Ao mesmo tempo, desconfio de propostas de transformação que não passem pela organização política coletiva, que também vejam o povo como objeto de benefícios pelos quais deveriam ser gratos e transferir seu protagonismo para a vanguarda, para a liderança, para o partido, para um outro que saberá melhor como conduzir as coisas que dizem respeito a todas e todos. Discordo tanto por questões políticas como duvido de sua eficiência. A consistência das conquistas e das transformações passa pela consciência, mais do que pela aceitação. Diante de um ataque conservador contra estas mesmas conquistas, que resposta seria mais forte: a de quem as tem como suas, ou a de quem apenas as recebeu, com uma certa dose de alienação?

Por isso sempre optei pelo caminho da organização independente em coletivos e depois movimentos. Nunca fui filiado a partido e nunca serei. Não por ojeriza, mas por discordância da forma de organização hierárquica. Se pudesse escolher, gostaria que a maior parte da esquerda dedicasse seus esforços e tempo disponível para a construção dessas organizações independentes, porque são elas que terão liberdade de tocar sua luta sem estar subordinada à agenda eleitoral. Aliás, a gênese do Movimento Passe Livre (MPL) é essa. Foi necessário o rompimento de boa parte dos militantes que tocavam a Campanha pelo Passe Livre de Florianópolis (fundada em 2000 e fortemente vinculada a uma corrente de esquerda dentro do PT) para que se transformasse em um instrumento de luta para a juventude. Livre para organizar a si própria de acordo, exclusivamente, com os interesses de seus integrantes e, principalmente, da pauta que justificava sua existência. Obteve grandes vitórias e transformou-se no MPL, que se expandiu Brasil afora.

As eleições nos fazem retomar debates antigos: reforma ou revolução? Estar dentro ou estar fora? Não o repetirei. Para mim não são necessariamente excludentes. Assim com individualmente o Eu do sujeito necessita de certa elaboração até produzir desfechos diferentes para antigas inibições, também o corpo social não parece ser capaz de tolerar mudanças bruscas sem antes uma boa dose de pequenas modificações. Nesse sentido concordo com Freud quando argumenta, em A dissecção da personalidade psíquica, que traços inconscientes das gerações anteriores, a tradição, se reproduzem nas gerações vindouras. “Provavelmente as concepções históricas chamadas de materialistas pecam por subestimar esse fator. Elas o põem de lado com a observação de que as ‘ideologias’ dos homens nada mais são do que produto e superestrutura de suas relações econômicas atuais. Isso é verdade, mas muito provavelmente não é toda a verdade. A humanidade não vive inteiramente no presente; o passado, a tradição da raça e do povo prossegue vivendo nas ideologias do Super-eu, apenas muito lentamente cede às influências do presente, às novas mudanças, e, na medida em que atua através do Super-eu, desempenha um grande papel na vida humana, independentemente das condições econômicas”.

Uma interpretação certeira de um analista pode não fazer efeito algum para um paciente cujo Eu não esteja “pronto”, não tenha trabalhado o suficiente as condições para chegar por si só ao lugar onde o analista imagina estar um dos eixos do sofrimento. Faço aqui um paralelo entre política e psicanálise. A análise esclarecida das organizações mais críticas não será suficiente para superar marcas milenares, ou de pelo menos 500 anos, do psiquismo do povo brasileiro. Há um trabalho de elaboração até o sentido interno alcançar uma nova posição. Busco Noam Chomsky para expressar melhor o que estou tentando dizer, mais especificamente na sua “Teoria da Jaula”. Tomo emprestado de Felipe Corrêa uma boa definição sobre: “A sociedade contemporânea estaria trancafiada dentro de uma jaula. O objetivo daqueles compromissados com a luta pela liberdade, pela igualdade e contra a opressão deveria ser, portanto, aumentar o chão dessa jaula até que as barras se quebrem e que o povo pudesse se ver livre da opressão – da jaula, cerceadora de suas liberdades.” Nas palavras de Chomsky: “Minhas metas de curto prazo são defender e até mesmo reforçar elementos da autoridade do Estado que embora sejam ilegítimos de maneira fundamental, são decisivamente necessários neste momento para impedir os esforços dedicados a atacar os progressos que foram conseguidos na extensão da democracia e dos direitos humanos.”

Na entrevista Reforma e Revolução (que pode ser lida na íntegra aqui), publicada no Brasil no livro Notas Sobre o Anarquismo, Chomsky nos explica melhor o que pensa (a citação é longa, mas valiosa):

 “Os trabalhadores brasileiros tinham algumas escolhas. Uma delas era simplesmente se subordinar a um poder absolutamente brutal. A outra era tentar expandir, em alguma proporção, a estrutura na qual poderiam atuar, e, então, mudar e conseguir algo mais – reconhecendo que estavam numa jaula, o que significa um sistema de opressão. Ora, algum anarquista sério veria um problema sobre qual escolha fazer? Digo, você deveria permanecer sob um sistema de opressão muito mais duro, ao invés de conquistar alguns direitos, utilizando essas vitórias como base para algo além, descobrindo como são possíveis as vitórias, e continuar a partir disso? Eu acho que não. E nem acho que isso seja uma questão. Agora, uma lei sobre o salário mínimo digno é uma lei. Ela passa por alguma organização governamental. Por isso, é errado lutar pelo salário mínimo digno? Eu acho que não. De fato, lutar por esse salário é também um modo de fazer as pessoas entenderem: ‘Olhe, nós podemos vencer. Nós não temos que aceitar o que acontece conosco. Existem formas de agir. Podemos agir juntos e conquistar coisas.’ Isso nos leva à questão das alternativas. Podemos construir alternativas? Sim, se soubermos que é possível fazer alguma coisa. Se as únicas opções disponíveis forem simplesmente seguir as ordens sendo você mesmo, ou tentar distinguir da melhor forma possível num ambiente opressor, você também não estará criando alternativas.” 

Com a boa companhia de Chomsky, defendo que a luta independente pelo fortalecimento da esfera pública, de melhores condições de vida para os debaixo com protagonismo destes, não impede que tenhamos a clareza de que governos como os de um Aécio Neves (representante puro sangue da elite brasileira) não signifiquem o mesmo que o governo petista. Quanto mais próximos da utopia capitalista, pior estaremos. Um caminho bom, para mim, é a completa independência dos movimentos, com a habilidade de se relacionar (pela pressão e negociação por ampliação de direitos) com as instituições. Não é porque somos contra que elas deixarão de existir. Mas já estou saindo do tema. O que estou propondo é deslocar o significado das eleições. Não se trata de um plebiscito pela organização social ideal. Não se trata de uma afirmação de identidade de cada indivíduo. Não é um cheque em branco para ninguém. Para mim é puramente uma escolha entre formas de gerir o capital mais ou menos agressivas para os debaixo, os que realmente ficarão com o ônus desse resultado. Essa menor agressividade petista não significa que seja igualmente dividida entre todas as partes, é verdade, mas não deveríamos temer lidar com a contradição, ela é que nos move, coletiva e individualmente.

E as contradições deste governo não são poucas, para usar de eufemismo. Repressão aos movimentos sociais (ainda há petista que insista na patética tese de que junho de 2013 foi um movimento de direita, tucano, de perseguição ao governo!), aos povos indígenas e aos moradores das favelas, as demissões dos grevistas do IBGE; alianças com representantes do atraso, favorecimento ao agronegócio, à indústria do automóvel, forte inclinação do viés predatório-ambiental de desenvolvimento etc. Ao mesmo tempo foi o projeto de governo que barrou a Alca (imagino o desastre que viveríamos em especial após a crise de 2008), inverteu as relações diplomáticas e econômicas com ênfase na América Latina e África, permitiu a criação da Comissão da Verdade (cujos resultados serão fundamentais para a transformação da violência estrutural de interesse de classe do estado brasileiro), e produziu o pacto social “lulista” para tirar o Brasil do mapa da fome e incluir a parcela mais pobre da sociedade no mercado de consumo, para colocar parte da juventude pobre e negra na universidade, e sem entrar em conflito com o capital (sugestão: Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica de Tales AbSaber, pela editora Hedra). Recomendo a leitura do texto de Luciana Oliveira, advogada que participou desde o início dos trabalhos de criação do Bolsa Família, do qual destaco um trecho aparentemente pouco significativo, mas forte demais: “O objetivo era claro, alcançar as famílias pobres, as excluídas por mais de 500 anos, as que nunca haviam sido, de fato, vistas por ninguém, as que nem “existiam” no mundo jurídico porque estavam alijadas até mesmo do processo de identificação de pessoas – muitas delas não tinham sequer certidão de nascimento.” (o texto na íntegra aqui).

Naturalmente não imagino nenhum dos conservadorismos da “era PT” sendo redesenhados de forma progressista em um retorno tucano. Pelo contrário, e não preciso mencionar a linha dura neoliberal do partido da burguesia puro sangue para convencê-los de que até mesmo as “poucas” melhorias de vida estariam sob risco. Retrocesso não é só uma palavra, o significado é real e pesará nas costas dos debaixo.

Diante deste cenário, que se encerra amanhã, alguns setores da esquerda não-petista decidiram por não apoiar a continuidade deste governo, outros decidiram apoiar com mais adesão, outros decidiram apoiar com menor adesão. Estou entre os dois últimos. Confesso que não consigo entrar no Transe Coração Valente, nem ceder parte do meu narcisismo e me identificar com o governo. Considero esta adesão acrítica nociva e permissiva para um projeto que, sem pressão pesada à esquerda, se venderá cada vez mais como algo que não é. Não estamos na utopia, não são esses os nossos sonhos de igualdade política, social e econômica. Adoraria que os militantes do voto se lançassem na militância também no período entre eleições. O perrengue que o PT passou nesta eleição tem relação direta com este abandono. Mas não quero dar ideia errada: se vierem pra luta, que não a burocratizem ou subordinem à agenda eleitoral. O movimento funciona melhor se estiver a serviço da vida.

Compreendo os setores que optam pelo voto nulo (e são diferentes os votos nulos, dos tradicionais anarquistas aos “marineiros”) tanto por não conseguirem aceitar a própria existência deste sistema ou pelos conservadorismos deste governo. Mas adoraria que pensassem em como isso pode parecer insensível diante daqueles que testemunharam melhores condições de vida. Será que isto ajuda a dialogar com a classe e criar relação de confiança? O “excesso” de solidariedade não pode parecer pouco caso? Essa impossibilidade de lidar com pragmatismo não revelaria também um traço sutil, inconsciente, de esperança por um governo não-degenerado, combativo e imune às correlações de força da “política grande”? O pessimismo completo com relação às transformações profundas via instituições é que impulsiona meu pragmatismo.

Não acredito que os não-petistas que torçam, como eu, pela vitória de Dilma, sejam favoráveis às contradições acima exemplificadas, assim como não acredito que “marineiros” de esquerda defenderiam pra valer a política econômica neoliberal do que seria o governo dela caso eleita. Prefiro acreditar que estes dois grupos venham a trabalhar juntos nas lutas pelas pautas populares, as reformas urbana e agrária popular, a democratização dos meios de comunicação, a revisão da Anistia para os torturadores e responsáveis pelos anos de chumbo, as demarcações de terras indígenas, ampliação dos direitos trabalhistas etc. Ficar demasiado preso a posições obsessivamente coerentes pode engessar o indivíduo, tornar o sujeito ativo num ambiente político radical, mas endógeno, hermético, pouco saudável além de tudo.

Aos petistas puro sangue recomendo uma “reciclagem” política. A denegação do fenômeno de junho de 2013 é absolutamente sintomática. Para começar, essa verdadeira miopia faz com que o partido não consiga compreender como aquele processo é fruto das transformações reais que empreendeu (pequenas, do ponto de vista do longo prazo e enormes, do ponto de vista do cotidiano, do tempo presente). Mexeu com a estrutura de classes no país, expôs muitas contradições. Ainda não deu tempo para que surjam novas sínteses, novas referências sobre como viver num Brasil diferente do que estávamos habituados. Meu receio é que diante de um cenário de incertezas, as forças políticas de esquerda radicais ou institucionais não estejam conseguindo oferecer respostas, apontar caminhos. Não desejo o fim do PT, gostaria que os espaços de poder político fossem ocupados por pessoas mais à esquerda. Acho que o PT tem uma responsabilidade imensa de, ao tirar boa parte do país da miséria e da fome, oferecer não apenas a saída das soluções individuais, de consumo, do estilo de vida pequeno burguês pouco generoso. É preciso disputar também os corações da “nova classe média”, com um ideal mais coletivo, menos competitivo, menos aberto para o transe de direita, essa loucura que não é apenas antipetista, mas antiesquerdista, antipopular, violenta e protofascista, extremamente regredida.

Além disso, é fundamental que desta reciclagem saia uma auto-crítica sobre como o partido perdeu (e isso é bom) a hegemonia sobre a esquerda. Aí estão o MPL, os garis do Rio de Janeiro, a luta indígena, os motoristas e cobradores de São Paulo. Junho de 2013 teve como legado a redução das passagens de ônibus em quase 200 cidades brasileiras, num montante de economia para a classe trabalhadora perto do valor de um ano de Bolsa Família, mas também o incentivo a trabalhadores e trabalhadoras a se organizar independente das direções de seus sindicatos, por exemplo. Uma cultura de luta dos debaixo se abriu no país, depois de sei lá quantos anos. Irão ignorar isso e arriscar perder ainda mais terreno aqui no chão?

O dia 26 de outubro de 2014 me faz pensar numa curiosa ironia. Foi num dia 26 de outubro, há dez anos, que o Movimento Passe Livre ocupou a Câmara dos Vereadores de Florianópolis para arrancar a aprovação da Lei do Passe Livre Estudantil (pauta principal do MPL antes de adotarmos a tarifa zero). Diante da ameaça dos vereadores em não votar o projeto, preparamos camisetas com a sugestiva pergunta: “Votação ou Revolução?” O projeto foi aprovado. Meses depois, com uma nova prefeitura conservadora, a Lei do Passe Livre foi derrubada pelos seus aliados no judiciário. Saudades de 26 de outubro de 2004. Que passe logo o 26 de outubro de 2014.

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Daniel Guimarães: Florianopolitano exilado em São Paulo, ex-jornalista em atividade. Anti-editor do site TarifaZero.org e integrante do Movimento Passe Livre. Acompanhante Terapêutico, estudando para ser psicanalista e, principalmente, acima de tudo Rubro Negro. Esse texto é a estreia de sua coluna mensal intitulada EM TRANSE

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